Nós, Eles e Eu registra o conflito entre Israel e a Palestina de forma preciosa
Nicolás Avruj é argentino de origem judaica. Sua família, de perfil progressista, preserva tradições de ideais judaicos, como o sionismo, que fizeram parte de sua educação. Aos 16 anos de idade, Nicolás ganhou uma viagem para conhecer Israel e, anos mais tarde, quis aprofundar o conhecimento daquela realidade, ficando mais tempo por lá e explorando o que não tinha visto ou entendido. A oportunidade surgiu em 2000, a propósito de visitar um primo que estava vivendo temporariamente em Tel Aviv. Só que, enquanto ele voava para lá, o primo voltava para a Argentina. De modo que o plano não vingou. Nicolás não se deu por achado, ficou cerca de três meses em viagem exploratória, arrumando jeitos de se hospedar, realizando pequenos trabalhos para bancar a viagem e, empunhando permanentemente sua câmera, foi conhecer tudo o que podia, tanto de Israel quanto da Palestina. Para começar, não se apresentava como judeu, mas como argentino, simplesmente. Isso lhe permitiu conviver com palestinos na Faixa de Gaza, inclusive aceitando hospedagem na casa deles. Pôde conhecer as condições de vida, o cotidiano, os sentimentos e os valores que os movem. Entender o posicionamento da OLP (Organização para a Libertação da Palestina), então regida por Yasser Arafat, e até filmar uma assembleia do Hamas. E também constatou o medo, a opressão, a revolta, o ódio, que estão presentes na vida daquele povo. Por outro lado, conviveu com judeus ortodoxos, com os de pensamento radical militarista, com os críticos da política do governo de Israel daquele momento, com uma jovem que visita casas de palestinos, como ele fez. Ou seja, de todos os matizes. Além dos pouco informados sobre a realidade dos palestinos. O que ele registrou ao longo desses meses é de uma preciosidade incrível, é um relato veraz de um conflito que parece eterno e insolúvel. As imagens passeiam por Tel Aviv, Jerusalém e seus diversos lados e contextos, Cisjordânia e Gaza, revelando a coragem e a audácia do cineasta argentino. Ele atravessou os muros da incompreensão e pôs em xeque a relação entre o bem e o mal, com uma honestidade admirável. De posse desse vasto material colhido, que chega a registrar a Segunda Intifada, ele não pôde trabalhar com isso de imediato. Era forte e impactante demais. Só quinze anos depois foi possível editar tudo isso, para produzir o documentário “Nós, Eles e Eu”, que acaba de ser lançado nos cinemas. É um trabalho incrível, que merece ser conhecido. Quando alguém pergunta hoje ao cineasta de que lado ele está, de Israel ou da Palestina, isso é o que mais o incomoda. As coisas não são assim e não é possível responder essa pergunta, é sua convicção. Vendo o filme, percebe-se o impacto que causou nele, e causa em nós, espectadores, tudo aquilo. Claro que só é possível desejar a paz, mas como, diante de tudo o que ele nos mostra?
Ralé oferece alegria como alternativa
“Ralé” é cinema alternativo, libertário, na contramão das tendências conservadoras e moralistas que parecem estar vencendo batalhas importantes no momento atual brasileiro. É, portanto, muito bem-vindo para reforçar a ideia de que já avançamos o suficiente para não poder mais aceitar retrocessos. A começar da questão do desejo, do amor e do casamento gay, que tem amplo destaque no filme. O casamento dos personagens Barão e Marcelo é uma espécie de fio condutor da trama, motivo de alegria e festa, ensejando manifestações claras e explícitas de afetividade e tesão. Assim como eles, outros personagens se expressam com a mesma desenvoltura, sem amarras ou falsos pudores. Não é só isso, o filme celebra a natureza, o espírito e a poética amazônica, a busca constante da liberdade e até a ayahuasca dos rituais do Santo Daime e da União do Vegetal. Não tanto pelo caráter religioso, mas por poder vê-la sem o estigma da droga. Já a maconha, estigmatizada socialmente ou não, é parte integrante e natural da vida dessas pessoas. Sem grilos. A natureza também se faz presente na cidade, numa sequência em que uma chuva muito forte alaga ruas e destrói um guarda-chuva, algo já corriqueiro nos nossos dias. A cena é bonita e serve de alerta e contraponto. Sem dramas ou vítimas, com suavidade. Os personagens riem, se divertem, dançam, cantam. E a música brasileira é parte importante dessa grande celebração que é a vida, digamos, marginal. Isso para ficar num termo que remete a um cinema caro à diretora Helena Ignez. São muitas sequências belas, ousadas, provocadoras, talvez, mas cheias de vitalidade e de crença na capacidade dos indivíduos de experimentar o sentido real da liberdade. É, nesse sentido, um filme de alto astral. O elenco é maravilhoso para a proposta da obra de Helena Ignez. Ney Matogrosso se entrega ao papel de modo pleno e ainda canta divinamente, como de costume. Zé Celso Martinez, da mesma forma, completamente solto e à vontade. E também canta e se acompanha ao piano. Djin Sganzerla e Simone Spaladore estão ótimas. Gente do teatro alternativo, como Mário Bortolotto e Marcelo Drummond, além da própria Helena Ignez, fazem participações importantes. Os personagens se confundem com os atores, que são, em larga medida, muito próximos deles mesmos. Ficção documental é o tom, já que não há uma história a contar, mas coisas legais a fazer. E que eles fazem com a maior naturalidade do mundo. Ou, pelo menos, assim parece. Há espaço para tanta soltura, tanto descompromisso, tanta liberdade e diversidade nesses tempos tão tensos, de crises, conflitos e guerras para todo lado? Por que não? Cada um busca os seus caminhos onde pode se encontrar. Uns, nos prédios envidraçados dos escritórios, outros, na selva amazônica. Talvez embalados pela mesma e rica música popular brasileira, que de Luiz Gonzaga a Ney Matogrosso acompanha sonhadores de todos os tipos. A seleção musical, que a própria diretora escolheu para o filme, é preciosa. De fato, a realização toda é muito boa.
Maravilhoso Boccaccio questiona a moral com uma beleza ímpar
Giovanni Boccaccio (1313-1375) e seu “Decamerão”, com 100 histórias escritas entre 1348 e 1353, marcam uma ruptura com a moral medieval e introduzem um realismo humanista, em que a sexualidade e a perversidade ocupam papel de relevo. Atraente e polêmico material, marco da literatura, um dos responsáveis pela fixação do idioma italiano, foi objeto da atenção dos melhores cineastas da Itália. Em 1962, o filme “Boccaccio 70”, com quatro episódios, reuniu Federico Fellini, Luchino Visconti, Vittorio De Sica e Mario Monicelli numa comédia antológica. Em 1971, foi a vez de Pier Paolo Pasolini filmar “Decameron”, com absoluto destaque para o erotismo. Outro grande trabalho cinematográfico. Agora é a vez dos irmãos Taviani, dupla brilhante de cineastas, contarem histórias livremente inspiradas no “Decamerão” de Boccaccio. A primeira coisa a apontar sobre esse filme dos irmãos Taviani é que ele é de uma beleza ímpar. Filmado na Toscana e Lazio, em lugares encantadores e envolvendo antiquíssimos castelos de até mil anos de idade, nos leva diretamente à cena medieval. A variação das cores e tonalidades se alterna para melhor expressar as diferentes situações contadas pelos narradores. Um elenco jovem, de belas moças e rapazes, contribui para a estética da obra, de maneira relevante. Assim, podemos dizer que “Maravilhoso Boccaccio” é em tudo e por tudo um filme sedutor. As histórias escolhidas e o tom com que são mostradas enfatizam o amor em seus múltiplos ângulos: do grotesco ao dramático e ao erótico, como antídoto para a morte, às vezes cruel e opressor, às vezes ingênuo e equivocado. A criação artística, a literatura, mostra os caminhos da imaginação, absolutamente essencial e necessária para enfrentar o mal, a tragédia, no caso, aqui, a peste negra, que devastava as cidades da Toscana na época em que Boccaccio escreveu. Um grupo de homens e mulheres jovens se refugia numa vila remota, nas colinas que cercam Florença, para escapar da peste e viver em comunidade com absoluta simplicidade, contando histórias uns para os outros. A imaginação é a seiva da vida desses jovens, em especial das mulheres, que tomam a dianteira da ação, a começar por decidir deixar a cidade, talvez numa proposta de vida imoral. Mas o que é a moral, diante da grandeza do amor e da própria sobrevivência?
O Tesouro leva a crise econômica europeia ao jardim das fábulas modernas
Em época de crise econômica mundial, flexibilização de direitos trabalhistas, desemprego, recursos escassos, a falta de dinheiro atinge todos, de uma forma ou de outra. Quando as dívidas se acumulam, qual pode ser a saída? Jogar na loteria, roubar? Mais charmoso, por certo, é imaginar que exista algum tesouro enterrado no jardim de algum lugar, que a gente possa encontrar e resolver o problema. A história da busca ao tesouro povoa a imaginação das crianças, desde sempre. E se de repente ela puder ser verdadeira? Conta a lenda que, numa vila romena, uma fortuna teria sido enterrada no quintal, para preservá-la do confisco pelo regime comunista. Um detector de metal, que pode ser alugado por um dia, poderia servir para encontrá-la. Verdade ou não, a questão é: o que seria hoje o tão almejado tesouro, se ele existir? Façam suas apostas, vendo o ótimo filme “O Tesouro’, de Corneliu Porumboiu. O cineasta é um talento já reconhecido depois de dois trabalhos muito criativos e originais na forma como se desenvolvem, dentro de um clima onde, aparentemente, nada acontece. São os filmes “A Leste de Bucareste”, de 2006, e “Polícia, Adjetivo”, de 2010. Porumboiu nos convida, em todos os seus filmes, em que ele também é responsável pelo roteiro original, a observar calmamente a vida de personagens do povo, na lida diária, mas com alguma ideia estranha na cabeça. O que pode gerar problemas, conflitos e, via de regra, complicações com a polícia. Revela o que foi o regime opressor e desconectado da realidade de Ceausescu, por meio desses personagens, tentando sobreviver como podem, uma vez que as regras do jogo estão sempre contra eles. O trabalho de Corneliu Porumboiu merece ser conhecido. Quem não viu seus filmes anteriores, tente encontrá-los por aí. E aproveite para ver no cinema “O Tesouro”. É preciso ter paciência com o ritmo do filme, mas não deixar de vê-lo até o fim. Como em seus outros trabalhos, é chegando lá que tudo se decide e se revela, sempre de modo inteligente e original.
Filme espanhol mais premiado do ano, Truman mescla humor e drama com o talento de Ricardo Darín
Dois amigos de infância, separados geograficamente e pelo tempo decorrido, reencontram-se por alguns dias, quando um deles aparece para uma visita surpresa. Tomás (Javier Cámara) vive no Canadá, com sua família, e vem encontrar-se com Julian (Ricardo Darín), que vive na Espanha, separado da mulher, com um filho em outra cidade, em um momento decisivo da vida. O encontro será marcado por muito afeto, estranhezas, cobranças, disputas e também muita solidariedade. É um filme que celebra a diversidade de pessoas e situações, buscando entender, não julgar. E como isso pode ser difícil nos relacionamentos humanos! O foco da narrativa está numa questão basilar: podemos manejar e controlar a nossa própria vida, mantendo as rédeas até seu último instante e garantindo até mesmo situações posteriores a ela mesma? Que domínio podemos ter sobre a própria morte? Qual a melhor maneira de se despedir da vida? E como nossas decisões podem afetar os outros? Que direito temos de levá-los a compartilhar de nossos desejos fúnebres? Quais são esses limites? Essa pode ser uma discussão de caráter filosófico, mas comporta também coisas bem prosaicas. Uma delas: com quem ficaria meu cachorro, velho e grande amigo, que vai sentir muito a minha falta? Isso exige uma cuidadosa seleção de a quem caberiam esses cuidados na minha ausência, na falta de um sucessor, digamos, natural. Não escolhi esse exemplo à toa. “Truman”, o título do filme, é o nome do cachorro em questão, o que mostra sua importância para a trama. O papel cabe ao cão Troilo, que tem o privilégio de ter como parceiros de desempenho dois atores magníficos. Ricardo Darín (“O Segredo dos Seus Olhos”, “Um Conto Chinês”) é um dos mais talentosos atores de cinema na atualidade. Não só do cinema argentino, mas do mundial. O espanhol Javier Cámara (“Fale com Ela”, “Viver é Fácil Com os Olhos Fechados”) tem uma expressividade e um senso de humor que lhe permitem construir personagens cheios de humanidade e sutileza. O convívio de ambos na telona é impactante. O diretor Cesc Gay tem especial interesse em mostrar questões humanas num nível mais complexo, inesperado, surpreendente, algumas vezes constrangedor. E o faz mesclando drama e humor de forma muito eficiente. Em 2012, ele dirigiu “O Que os Homens Falam”, ótimo filme, concebido como antologia de várias histórias, que também contou com a participação de Ricardo Darín e Javier Cámara no elenco. Mas eles não contracenavam no mesmo episódio. Também naquele filme, o roteiro original coube ao diretor e seu parceiro Tomás Aragay. Parcerias bem sucedidas que voltam a se repetir. “Truman” foi o grande vencedor do prêmio Goya 2016 (O Oscar espanhol). Levou nada menos que os prêmios de Melhor Filme, Direção, Roteiro Original e para os Atores, protagonista e coadjuvante. Além de prêmios em outros festivais, como o de San Sebastian, pela atuação de Ricardo Darín. Tudo merecido.
Sinfonia da Necrópole combina musical, terror e romance de forma divertida e original
Uma trama toda desenvolvida em cemitérios, no caso, o Araçá, o Consolação e outro em São Paulo, dá origem a um filme que engloba os gêneros terror, comédia e musical. Em meio aos túmulos, enterros e missa de corpo presente, há espaço para cantos, danças, piada e até romance (ma non troppo). Tudo amalgamado pelo talento criativo de Juliana Rojas, de “Trabalhar Cansa” (2011, em parceria com Marco Dutra). Ela fez até música para “Sinfonia da Necrópole”. O resultado surpreende pela inovação. O cemitério é o ambiente que, atingido pela superpopulação urbana, pede uma reforma e a sua verticalização, para poder atender à demanda. Só que isso pode trazer problemas para as famílias, para os túmulos abandonados, para a sensibilidade dos que temem mexer com os mortos e, talvez, possa incomodar os próprios mortos. Que podem voltar para reclamar, na forma de zumbis cantores. De qualquer modo, é preciso enfrentar o problema. É o que fazem os personagens, contando com a competência de um elenco faz tudo, que tem de dar conta de um musical, do drama, do humor e do fantástico da situação. Original, divertido.
Yorimatã resgata a carreira musical de Luli e Lucina
“Yorimatã” é um documentário que procura recuperar a rica história musical da dupla de cantoras e compositoras Luli e Lucina, que esteve no centro dos acontecimentos da MPB, nas décadas de 1970 e 1980. Conviveu e trabalhou com grandes talentos desses períodos, mas, por razões diversas, sempre acabou se afastando da ribalta, sem poder colher os frutos de seus inegáveis méritos. Para viver o amor que pulsava entre elas, junto com a música. Para construir uma família a três, com o fotógrafo Luís Fernando Borges da Fonseca. Para viver uma vida hippie no mato, longe da cidade, em economia de subsistência, por opção ideológica. E, também, retornando às origens da natureza, quando um câncer acometeu Luís Fernando, para estar com ele na doença. Com tantos percalços e opções viscerais ou radicais, a dupla não alcançou o sucesso que sempre esteve por perto. Mas tem muito o que mostrar, nas imagens recuperadas das filmagens em VHS e fotos que Luís Fernando registrou por longos anos. E nos depoimentos atuais delas, de Gilberto Gil, Zélia Duncan, Tetê Espíndola, Ney Matogrosso, Antonio Adolfo, Joyce e outros mais. Para quem não conhece, ou conhece pouco, o filme mostra as músicas e o universo cultural da produção delas muito bem. O título “Yorimatã”, segundo a dupla, é uma espécie de palavra mágica que significa “salve a criança da mata”. Primeiro longa do diretor Rafael Saar, o filme venceu o festival In-Edit Brasil, dedicado a documentários musicais. https://www.youtube.com/watch?v=Yc-RDFzgDIk
Drama islandês premiado, Desajustados é muito melhor que seu título nacional
Fúsi (Gunnar Jónsson) é um homem grande, obeso, na faixa dos 40 anos de idade, ingênuo, de interesses e comportamentos ainda infantis. Ao conviver com uma menina vizinha, suas atitudes se equiparam às dela. É virgem, vive com a mãe, tem bom coração, sofre bullying de colegas no trabalho como despachador de malas no aeroporto, mas os perdoa com facilidade. Ele é o personagem central de “Desajustados”, filme islandês que foi o vencedor do Festival de Tribeca do ano passado, cujo título original é “Fúsi”, o nome do protagonista. O longa revela sua rotina sempre repetitiva, do restaurante, das músicas pedidas no rádio e do seu interesse por reconstruir com soldadinhos, tanques e outras peças, batalhas da 2ª Guerra Mundial, ao lado de seu único amigo. Que Fúsi possa ser considerado um desajustado, por seus comportamentos, para os padrões sociais esperados para alguém como ele e com sua idade, parece óbvio. Mas o título brasileiro não deixa de ser um julgamento, um rótulo que rejeita a figura. Por que a rejeição a uma doce criatura como essa? Por ser um loser, na visão capitalista difundida pelos Estados Unidos? Por entendê-lo como um doente mental? Ou o quê? Acontece que o título está no plural, o que engloba também a personagem Alma (Ilmur Kristjánsdóttir), uma mulher ativa e vibrante, que ama flores e trabalhava numa floricultura. Mas perde seu emprego e o que lhe resta é aceitar um trabalho como lixeira. Ela entra na vida de Fúsi por acaso, ele se dedica a ela e a ajuda numa crise de depressão. Chamá-la também de desajustada só agrega julgamento aos que ficam desempregados e aos que sofrem de depressão. Sem que uma coisa precise levar à outra. Não faz sentido. É muito infeliz o título brasileiro desse belo filme islandês. Na realidade, o filme é terno como seu protagonista e cheio de vida, como a mulher que se envolve com ele, capaz de valorizar o respeito humano e de entender a mente ingênua dos que passam pela vida sem acesso maior aos bens culturais, sem ambições, sem conseguir vencer uma timidez atávica. Ou, quem sabe, sem conseguir entender esse mundo onde vieram parar. Basta esquecer o título do filme para perceber que estamos diante de figuras humanas frágeis, que se debatem num dia-a-dia frustrante e pouco acolhedor. Não como derrotadas, mas como sobreviventes. Isso também é uma batalha, às vezes tão dura quanto as da guerra que Fúsi reconstrói. O ator protagonista, Gunnar Jónsson, recentemente visto em “A Ovelha Negra” (2015), está ótimo, perfeito para o papel. Foi premiado nos festivais de Marrakech e de Tribeca em 2015. Merecidamente. Ilmur Kristjánsdóttir, que faz Alma, também está muito bem. O contraste da dupla, em todos os sentidos, é cativante. O frio e a neve que fazem parte da história, como é inevitável acontecer em filmes da Islândia, servem para acrescentar um clima cinzento e triste à narrativa. Mas é apenas um elemento acessório e nem tão explorado assim pelo diretor Dagur Kári (que já dirigiu, nos EUA, “O Bom Coração”). Os ambientes internos, um tanto escuros, dizem mais dos sentimentos e limites de vida dos personagens do que qualquer outra coisa. Porém, é um filme que também tem muito carinho e muitas flores. Portanto, é também cheio de esperança.
Cemitério do Esplendor convida o espectador a imaginar outras vidas
“O melhor lugar do mundo é aqui e agora”, pregava Gilberto Gil em uma canção. Pelo menos, não há nada mais centrado e vinculado à realidade da pessoa e de sua relação com o mundo do que o aqui e o agora. E o contrário disso pode até significar algo de patológico, como demonstra “Cemitério do Esplendor”, novo filme do ótimo diretor tailandês Apichatpong Weerasethakul, que venceu a Palma de Ouro no Festival de Cannes de 2010 com o sobrenatural “Tio Boonmee, que Pode Recordar suas Vidas Passadas”. Não é de estranhar, portanto, que o filme seja situado num hospital. Na verdade, um hospital improvisado, instalado numa antiga escola abandonada. Numa das cenas de atendimento, o médico sugere ao paciente que procure um hospital de verdade para se tratar, já que ali faltam recursos. De fato, as instalações parecem precárias e os leitos estão tomados por soldados com uma misteriosa doença do sono. Eles passam quase todo o tempo dormindo, assistidos por alguns voluntários ou parentes que se dispõem a acompanhá-los em plena vivência do sono. E que estão ali em busca de conectar-se com os sentimentos e sonhos desses soldados que, na verdade, lá não parecem estar. A personagem de uma vidente se destaca, usando seus poderes para se comunicar com o que os soldados estariam vivendo e ajudar os parentes a se relacionarem com esses homens adormecidos. Já uma voluntária vincula-se ao passado do local como escola e vê coisas que então aconteciam. Descobriremos, ao longo do filme, que a floresta que circunda o local foi no passado remoto um lugar esplendoroso, cheio de luxo e riqueza. Onde vemos árvores, folhas e caminhos, a vidente vê magníficos palácios, salas ricamente decoradas, reis e guerreiros que devem estar se valendo da energia dos soldados adormecidos para realizar suas batalhas de um tempo muito distante. Com uma narrativa como essa, o cineasta tailandês cria um filme original, na medida em que nada (ou quase nada) do que é mostrado é o que importa. Tudo está fora dali, em outro lugar e num outro tempo. O filme suprime o aqui e agora. O que resta dele é o que de mais banal existe: o momento em que se acorda, a ingestão de um alimento, uma ida ao banheiro. Quando se faz um passeio pelo bosque, não é lá que estamos e não é disso que se fala. Quando se dorme, o que prevalece é o que está fora dali, nos sonhos ou nas vidas passadas que estão sendo experimentadas. O que não vemos é o que importa, não o que vemos. Assim como na literatura, o filme só se completa na imaginação de cada um. Pode-se ter, assim, uma compreensão do esplendor desse passado, tão presente, e desse lugar tão distinto do hospital e da floresta que ali estão. O título não podia ser melhor, é um cemitério que não aparece como cemitério e que tem um esplendor imaginário, que nunca vemos. As eventuais crenças em outras vidas ou referências a uma concepção budista do mundo é o que menos importa na abordagem do diretor. Há uma espiritualidade que exala da trama, mas não se trata de nenhum tipo de proposta religiosa. E também não é nada solene. O filme tem lances bem-humorados e até eróticos. Alguns elementos inesperados compõem o charme do espetáculo. É preciso se deixar levar pela proposta e curtir o filme sem ficar preocupado em tentar entender ou julgar o que está acontecendo. A obra artística se revela pelo que produz de ressonância, em cada espectador, resultando num dos filmes mais intrigantes e divertidos do ano.
O Presidente oferece uma fábula para a primavera árabe
No final dos anos 1980, o cinema iraniano despontava como a grande novidade da sétima arte. Retomando o neorrealismo como expressão cinematográfica e produzindo narrativas que focavam, principalmente, as crianças, para, de um lado, evitar a censura e, de outro, retratar a realidade do país, produziram-se pequenos grandes filmes e revelaram-se grandes diretores. A Mostra Internacional de Cinema de São Paulo foi grande responsável pela difusão dos primeiros filmes iranianos no país, trazendo, entre outras, obras de Mohsen Makhmalbaf, como o filme “O Ambulante” (1989), que impressionava pela qualidade do trabalho e seu teor crítico e político, vindo de onde vinha. Desde então, o cineasta nunca decepcionou. “Gabbeh” (1995), “O Silêncio” (1998), “A Caminho de Kandahar” (2001) e “O Jardineiro” (2012) são apenas alguns dos belos filmes que ele criou, cada um a seu modo, em diferentes partes do mundo. Makhmalbaf foi ativista de direitos humanos contra o regime do antigo Xá Reza Pahlavi e chegou a ficar anos preso por isso. Mas o regime dos aiatolás, em vez de celebrá-lo, o perseguiu com sua censura, a partir do momento em que ele se destacou mundialmente. Ele acabou no exílio e relata que já tentaram matá-lo, mesmo fora do Irã. Seu novo trabalho, “O Presidente”, foi realizado na Geórgia e conta a história de um ditador que é derrubado e circula incógnito por seu país, com seu neto de 5 anos, tentando fugir e escapar de um linchamento ou execução. Tudo parecia estar no lugar e no melhor dos mundos, na vigência de seu poder discricionário. A opressão do povo não era sentida, ou notada, por ele e por sua família, vivendo no luxo dos palácios. Quando derrubado, percebeu mais claramente a força do ódio contra ele e seu regime, mas, ao se esconder, também conheceu a verdadeira miséria e desgraça que assolavam seu povo. A fábula que remete a uma velha história do governante que desconhecia como era e como vivia seu povo não é nova. No filme, o périplo do rei, no caso, ex-rei, é revelador do sofrimento que o povo sempre amargou para que o governante pudesse viver no luxo. Mas discute-se também o que acontece após a destituição do ditador, o que substitui a violência do antigo regime. O ódio dos vencedores e a desordem social geram tanto ou mais violência, passando uma ideia de desesperança a respeito de qualquer solução de força. Isso nos remete aos caminhos da chamada primavera árabe, que resultou em tantas guerras e opressões como as que buscou superar. Makhmalbaf cita em entrevista sobre o filme o que se passa com a Síria atual, como exemplo. Poderia remeter-nos à Revolução Francesa ou à Revolução Cultural da China, de Mao Tsé-Tung ou, ainda, a muitas outras situações contemporâneas, em que a solução “violenta” gerou mais problemas, ainda que o mote das ações fosse o combate ao autoritarismo ou à corrupção. “O Presidente” se passa num país fictício. A fábula é universal e, a rigor, vale para qualquer lugar e qualquer tempo. Makhmalbaf sabe bem disso. Vive entre Londres e Paris, mas já viveu e trabalhou até no Afeganistão. Filmou também no Paquistão, em Israel, na Turquia, no Tadjiquistão e, agora, na Geórgia. Pôde ver e vivenciar muito dessa espiral de violência para a qual busca nos alertar nesse “O Presidente”.
Fica Comigo encontra humor surreal e amargo na solidão
Tudo parece indicar o contrário, já que no mundo virtual as pessoas têm centenas de amigos. Verdadeiras bobagens viralizam, como se diz, entusiasmando os que as postaram. Pessoas mais conhecidas podem ter milhões de “seguidores”. Mas a solidão permanece um dos maiores problemas psicológicos do nosso tempo. De muitas maneiras, o sentimento de estar só, de não ser amado ou desejado genuinamente, de não encontrar sentido para a própria existência ou de se sentir isolado em meio à multidão continuam a ser fontes de grande sofrimento. A falta de uma vida interior mais rica deixa muita gente sem o chão sob os próprios pés. O cinema já abordou essa questão pelos mais diversos ângulos, geralmente no enfoque dramático. Em “Fique Comigo”, o diretor francês Samuel Benchetrit buscou rever o assunto pela comédia, ao adaptar um livro que ele próprio escreveu, “Les Chroniques de L’Asphalte”. Mais do que isso, fez uma comédia ligeira, em que os personagens aparecem em situações bizarras, um tanto surrealistas. Num prédio de apartamentos, na periferia de Paris, o elevador vive quebrado, causando transtorno a seus moradores. Há um homem que, por morar no 1º andar, não quer pagar o conserto do elevador, mas uma overdose de esteira ergométrica o deixa numa cadeira de rodas por algum tempo. Vai daí que ele se encontra casualmente com uma enfermeira de semblante triste e tenta conquistá-la, passando-se por fotógrafo, que já rodou boa parte do mundo. Engraçado? Um pouco, mas beirando o constrangedor. A falta de espontaneidade, o passar-se por quem não é, se torna embaraçoso, digno de pena. Essa é uma das histórias/relacionamentos que o filme mostra. Há a da mulher emigrante de origem argelina, cujo único filho está na prisão, que recebe a “visita” de um astronauta americano, diretamente do espaço. E há, ainda, a história do adolescente que parece abandonado pelos pais e que descobre uma estrela morando a seu lado. A atriz, hoje decadente, traz uma nova dimensão à vida dele. “Fique Comigo” mostra, alternadamente, os três casos. Todos em busca de reter alguém que, de algum modo, preencheu a vida de outro alguém, mesmo que de forma passageira, fluida, improvável. Com isso, se acentua a necessidade humana de afeto, uma necessidade desesperada, por sinal. E o custo da solidão. As histórias são diferentes entre si, mas dialogam a partir desse eixo central, que é relevante e sério. E não deixa de ser divertido, também. O elenco é um dos trunfos do filme, a começar pela excelente Isabelle Huppert (“Amor”), no papel da atriz Jeanne Meyer, aquela que já teve melhores dias quando mais jovem. Logo Huppert, que está no auge da força interpretativa, ainda que o papel de Jeanne não exija tanto assim dela. Jules Benchetrit (“Um Reencontro”), filho do diretor, é o adolescente que contracena com ela. Valeria Bruni Tedeschi (“Um Castelo na Itália”), a enfermeira triste, e o suposto fotógrafo, vivido por Gustave Kervern (“Em um Pátio de Paris”), formam um par angustiante e revelador da solidão que procuram retratar. E o fazem muito bem. A argelina Tassadit Mandi (“Dheepan: o Refúgio”), muito boa, faz Hamida e seu par improvável é o astronauta, papel do americano Michael Pitt (“Violência Gratuita”). A dupla também funciona bem. O conjunto continua dando a ideia de uma junção de histórias, apesar do elo que as une. Mas cada uma das três histórias é digna de atenção, e o tema está bem abordado no registro escolhido da comédia, algo dramática.
O Abraço da Serpente registra uma cultura em extinção
Os relatos de dois cientistas e exploradores da região amazônica são a base do roteiro do filme colombiano “O Abraço da Serpente”, dirigido por Ciro Guerra. O etnólogo alemão Theodor Koch-Grünberg (1862-1924) explorou a região amazônica da América do Sul e estudou os povos da floresta. Morreu no Brasil, na cidade de Boa Vista. O botânico norte-americano Richard Evans Schultes (1915-2001) explorou a mesma região, interessado especialmente em uma planta, descoberta e citada nos relatos de Koch-Grünberg: a yakruna. Que sentido tem hoje para todos nós a busca por uma planta divina que cura e ensina a sonhar? Essa foi a razão de ser de uma expedição científica. Mas a yakruna, na realidade, simboliza a própria existência de, pelo menos, um povo indígena que está desaparecendo. O resgate do conhecimento dos povos na floresta, intimamente relacionado à vivência com a selva, sua água, seus animais, sua multiplicidade de plantas, envolve uma questão cultural, antropológica, da maior relevância. “O Abraço da Serpente” contribui para valorizar tudo isso, apontar para o que está sendo perdido e o que ainda pode ser recuperado, por meio de um personagem indígena que é o centro da narrativa. Ele surge, primeiro em sua juventude, como último sobrevivente de seu povo, vivendo isolado selva adentro. Desconfiado e crítico, por razões óbvias, do homem branco e da exploração da borracha, que trouxe a desgraça e dizimou seu povo. Depois, em outro tempo, como um xamã esquecido, perdido na sua mata, vivendo problemas de identidade em decorrência das faltas de referência e de memória. Nos dois tempos, há o convívio complexo e conflitivo com os cientistas exploradores. E também a possibilidade de aprender com brancos que não desejam destruir os aborígenes ou explorá-los, mas conhecê-los, valorizá-los, divulgar seus conhecimentos. A narrativa se desenvolve na forma de uma aventura, que traz perigos, desencontros e vai revelando o que se encontra nessa floresta: o que resta de seus povos de origem, a exploração a que estão expostos, o uso religioso equivocado e autoritário, encontrado em alguns locais. Com direito a manifestações tresloucadas e messiânicas, que não libertam, oprimem. A natureza é exuberante, evidentemente. E bem explorada nessa aventura. Uma bela fotografia em preto e branco se encarrega de ressaltá-la. O nosso anseio estético pediria que o filme fosse a cores. Seria ainda mais atraente. Poderia se tornar mais exótico, turístico e não tão propenso ao uso reflexivo? Não creio. Em dois momentos, no início e no fim do filme, imagens de formas geométricas a cores são inseridas. Remetem ao futuro? À passagem do tempo? Sem dúvida, o tempo joga um papel relevante em “O Abraço da Serpente”. Coisas, lembranças, memórias, são levadas pelo tempo. Povos inteiros se desfazem e desaparecem, ao longo do tempo. Pela ação predatória dos seres humanos, toda uma tradição e uma identidade tendem a desaparecer. Se considerarmos que metade da superfície da Colômbia está na região amazônica, há aí uma forte perda do próprio significado de nacionalidade. O elenco de “O Abraço da Serpente” nos leva para dentro dessa dimensão amazônica, como se estivéssemos fazendo parte daqueles povos e dos exploradores que vêm do mundo desenvolvido, em busca de sua cultura. É um desempenho muito convincente. Trata-se de uma experiência que vale a pena e mostra a força do cinema colombiano atual. Premiado nos festivais de Cannes e Sundance, “O Abraço da Serpente” está entre os cinco finalistas do Oscar 2016 de Melhor Filme Estrangeiro, o que é um reconhecimento importante, em termos de mercado.











