Amor & Amizade faz leitura avançada e pouco convencional de Jane Austen
No primeiro ato de “Metropolitan” (1990), Tom, personagem principal vivido por Edward Clements, tem uma discussão literária com Audrey (Carolyn Farina), no qual ele desdenha de “Mansfield Park”, considerando o livro de Jane Austen ridículo dentro de um contexto contemporâneo. Inconformada, Audrey retruca: “Já te ocorreu que o mundo contemporâneo, pela perspectiva de Austen, ficaria ainda pior?”. Com 26 anos de carreira, Whit Stillman continua fiel a um sentimento de deslocamento vivido por seus personagens nos ambientes em que transitam, como se estivessem despreparados para um novo rito de passagem. É um conflito que aproxima “Metropolitan” ou qualquer um dos seus três filmes seguintes de “Amor & Amizade”, este justamente inspirado em um romance de Jane Austen. Assumidamente comercial, o título pode fazer os fãs da escritora pensarem que “Amor & Amizade” é uma adaptação homônima do romance escrito em 1790, quando Austen ainda era uma adolescente. No entanto, o roteiro de Stillman tem como base “Lady Susan”, publicado postumamente em 1871. Kate Beckinsale (“Anjos da Noite”) é quem interpreta Lady Susan Vernon, uma quase quarentona que enviuvou sem uma herança generosa. Exatamente por isso, aproveita a ocasião do retorno de sua filha Frederica (Morfydd Clark, de “Orgulho e Preconceito e Zumbis”) após a expulsão do colégio em que estudava para aproximá-la do afortunado Sir James Martin (o hilário Tom Bennett, mais conhecido por suas participações em seriados britânicos), que vive de cometer gafes durante as tentativas frustradas de conquistá-la. Sem muito sucesso na tentativa em sofisticar o seu nome por meio de sua própria filha, Lady Susan parece ter outras cartas na manga, como conquistar Reginald DeCourcy (Xavier Samuel, de “A Saga Crepúsculo: Eclipse”), jovem irmão de Catherine DeCourcy (Emma Greenwell, da série “Shameless”), esposa de seu ex-cunhado, Charles Vernon (Justin Edwards, de “A Duquesa”). Durante os flertes, surgem os boatos de que Lady Susan também estaria atraída por Lord Manwaring (Lochlann O’Mearáin, da série “Vikings”), este em um casamento aos frangalhos com Lady Lucy (Jenn Murray, de “Brooklyn”). Mais do que respeitar os elementos de uma boa comédia de costumes, Whit Stillman persegue uma aproximação entre os valores antiquados e modernos. Não à toa, ele traz Chloë Sevigny (série “Bloodline”) fazendo a melhor amiga americana de Beckinsale: as duas atrizes foram também protagonistas de “Os Últimos Embalos do Disco”, vivendo garotas que parecem as encarnações futuras de Lady Susan e sua confidente Alicia Johnson em plena era da conversão de hippies em yuppies. O resultado está longe de ser uma adaptação convencional de Austen, especialmente pela ênfase na ardilosidade que move Lady Susan. Os homens até pensam que estão resolvendo os seus assuntos amorosos com uma impunidade que não favorece as mulheres. Mal sabem que as razões contidas no coração de Lady Susan a fazem estar muito avançada no jogo de aparências que articula.
A Intrometida rende um dos melhores papeis recentes de Susan Sarandon
A luta das atrizes veteranas de Hollywood por bons papéis parece estar surtindo efeito nestes tempos em que a representatividade é a palavra de ordem no cinema. Isso porque tivemos nos últimos meses ao menos quatro filmes que se sobressaíram dentro do circuito independente com mulheres maduras: “Reaprendendo a Amar”, “Aprendendo com a Vovó”, “Hello, My Name Is Doris” e, agora, “A Intrometida”. Grande atriz, Susan Sarandon vive no segundo longa-metragem de Lorene Scafaria (“Procura-se um Amigo para o Fim do Mundo”) a sua melhor protagonista desde “Anjo de Vidro”, drama natalino produzido em 2004. Na superfície, a sua Marnie tem semelhanças com a Carol Petersen de Blythe Danner em “Reaprendendo a Amar”. São duas mulheres na faixa dos 60 anos que não sabem muito bem como aplacar a solidão advinda da viuvez, reavaliando as próprias funções em uma vida que não as surpreende mais. No entanto, as semelhanças param a partir do momento em que fica evidente a personalidade mais expansiva de Marnie, que não tem qualquer dificuldade em se meter em assuntos alheios, como bem deixa explícito o título do filme. É um comportamento que sufoca a sua filha única Lori (Rose Byrne, de “Vizinhos”), uma roteirista com dificuldades para superar o fim do relacionamento com Jacob (Jason Ritter, da série “Parenthood”), um jovem ator que já está com outra companheira. Diante da exigência de Lori para que tenha a sua independência respeitada, Marnie passa a estreitar os laços com outras pessoas, tentando justificar a sua presença a partir de um auxílio por vezes financeiro para quem não tem a mesma fortuna que a sua. A primeira a contar com as suas generosas contribuições é Jillian (Cecily Strong, do humorístico “Saturday Night Live”), colega lésbica de Lori que teve um casamento feito às presas e que agora terá a chance de celebrar como deseja em uma festa de mais de US$ 10 mil totalmente bancada por Marnie. Outro a ter a sua ajuda é Freddy (Jerrod Carmichael, também de “Vizinhos”), vendedor de uma loja da Apple que conta com as caronas de Marnie para se deslocar até a faculdade iniciada recentemente. Mesmo partindo de um registro mais cômico do que dramático, surpreende como Lorene Scafaria (também autora do roteiro) não ridiculariza Marnie por estar em uma posição privilegiada diante dos personagens secundários. Claro que a protagonista terá o momento em que ouvirá algumas boas verdades sobre o seu comportamento a partir das consultas com a mesma terapeuta de sua filha, Diane (Amy Landecker, da série “Transparent”). No entanto, isso não reduz a sua benevolência natural, a sua amabilidade com o próximo. Outro fato que traz maior interesse ao filme é o seu tom de crônica, oferecendo uma perspectiva crível de pequenas cenas do cotidiano, que irá gerar uma proximidade muito especial com o público da terceira idade, inclusive no interesse amoroso de Marnie com o policial aposentado Zipper (J.K. Simmons, de “Whiplash”). Não que o espectador mais jovem seja incapaz de ter empatia por essa história, que também destaca a cumplicidade na relação entre mães e filhas.
Esquadrão Suicida não entrega o que promete
Após o banho de água fria provocado por “Batman vs Superman: A Origem da Justiça”, “Esquadrão Suicida” prometia um tom diferente para o universo que a DC está construindo nos cinemas, uma espécie de resposta à concorrência já consolidada da Marvel. Mas, lamentavelmente, a tentativa não rendeu o esperado na tela. Espécie de sequência direta dos eventos trágicos envolvendo a figura do Superman (Henry Cavill), “Esquadrão Suicida” inicia com a exposição dos planos da implacável Amanda Waller (Viola Davis), oficial da CIA que recomenda ao presidente a escalação de um time composto pelos maiores criminosos do país para combater uma entidade que pretende cobrir o mundo com trevas e converter humanos em soldados monstruosos. O time? Floyd Lawton (Will Smith), conhecido como Pistoleiro, um matador de aluguel com uma filha de 11 anos; Harleen Quinzel (Margot Robbie), que adotou o nome Arlequina ao se tornar a companheira de Coringa (Jared Leto); George Harkness (Jai Courtney), o Capitão Bumerangue, Waylon Jones (Adewale Akinnuoye-Agbaje), o Crocodilo; Chato Santana (Jay Hernandez), apelidado de El Diablo e com habilidades em incendiar tudo ao redor; e Christopher Weiss (Adam Beach), também chamado de Amarra. Ainda que Weller tenha implantado um chip capaz de causar a morte instantânea com o comando em um aplicativo sob o seu controle, é necessário trazer a bordo um líder capaz de supervisionar o temperamento de figuras que podem a qualquer momento trair o acordo de salvar o dia por uma redução de pena. Para isso, é escalado o soldado Rick Flag (Joel Kinnaman), namorado da arqueóloga June Moone (Cara Delevingne), possuída por um espírito milenar que cumpre um papel importante na ação. Outra adição que possui um bom caráter é Katana (Karen Fukuhara), japonesa extremamente habilidosa com espadas. Com a leva inesgotável de mutantes e justiceiros zelando pela sobrevivência da humanidade, “Esquadrão Suicida” trazia como possibilidade uma visão ainda pouco explorada nas adaptações de quadrinhos, na qual a moralidade surge distorcida, quando a prática do bem não parece uma alternativa clara para reverter a arquitetura do caos. Algo recentemente testado com sucesso em “Deadpool”, que tinha um anti-herói como protagonista. O passo de “Esquadrão Suicida” sugeria ser o mais largo, com um material promocional regado na piração e com um diretor, David Ayer, que entende a linguagem dos personagens marginalizados, das escórias da sociedade, como já demonstrou em seu roteiros de “Dia de Treinamento” (2001), “Tempos de Violência” (2005) e “Marcados para Morrer” (2012). Porém, o peso da insanidade parece ter recaído somente sobre os ombros de Margot Robbie, que supera todas as expectativas como uma delinquente que desejava apenas ter uma vida de comercial de margarina com o seu amado de sorriso nefasto – o Coringa, aliás, deve ter ficado com a maior parte de sua participação perdida na ilha de edição, ao julgar por suas intervenções de caráter quase figurativo. Além de uma encenação branda da violência, “Esquadrão Suicida” não é competente nem ao introduzir os seus personagens para o público. Confuso, o primeiro ato acredita que uma playlist de rock e cartilhas ininteligíveis dão conta de carregar todo o histórico de cada um. Igualmente mal resolvido é o desejo da Warner de fazer um “Os Vingadores” dos vilões, forçando um sentimento de amizade e companheirismo que definitivamente inexiste entre os personagens. Ao final, o efeito provocado por “Esquadrão Suicida” é como uma promessa de embriaguez épica, que só no primeiro gole revela ser patrocinada por cerveja sem álcool.


