Versão live-action de “Como Treinar o Seu Dragão” chega aos cinemas

Adaptação da animação popular é o principal lançamento da semana, que chega às telas acompanhado por filmes do circuito de arte

Divulgação/Universal Pictures

A versão live-action de “Como Treinar o Seu Dragão” é o único lançamento amplo da semana, dominando o circuito em antecipação à previsão de domínio nas bilheterias. Acompanhando a adaptação da animação popular, o circuito limitado recebe uma seleção de títulos de festivais, com quatro estreias europeias, uma comédia metalinguística sul-coreana e duas obras brasileiras não convencionais: um terror e um documentário para maiores.

 

COMO TREINAR O SEU DRAGÃO

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Uma década após encantar públicos de todas as idades com animação, a adorada saga “Como Treinar o Seu Dragão” retorna em nova forma: um grandioso live-action dirigido por Dean DeBlois, responsável pela própria trilogia animada da DreamWorks. Nesta versão com atores de carne e osso (e dragões em espetaculares efeitos digitais), a história mantém-se fiel à premissa que conquistou o mundo, adicionando realismo visual sem perder a magia.

A trama se passa na mítica ilha viking de Berk, onde força e valentia são medidas pela habilidade em combater dragões – criaturas que roubam rebanhos e queimam vilas. No centro temos Soluço (Mason Thames, de “O Telefone Preto”), um adolescente inteligente porém desajeitado que não se encaixa nos padrões truculentos de sua tribo. Filho único de Stoico (Gerard Butler, repetindo seu papel da animação), o estoico líder dos vikings, Soluço anseia por provar seu valor como caçador de dragões. Contudo, tudo muda quando ele encontra uma das criaturas mais temidas – um Fúria da Noite – e, em vez de matá-la, decide secretamente cuidar dela. Nasce assim uma amizade improvável entre o rapaz e o dragão, batizado de Banguela, que vai desafiar séculos de hostilidade entre espécies.

O enredo desta nova adaptação acompanha de perto os eventos do primeiro filme animado, recriando cenas icônicas com impressionante riqueza de detalhes e emoção palpável. A história mostra Soluço aprendendo pacientemente a ganhar a confiança de Banguela, até ajudá-lo a superar a falta de um pedaço da sua cauda com uma prótese engenhosamente construída. Outros “grandes momentos” do original também são materializados: da primeira carícia de Soluço na cabeça de Banguela ao dramático confronto com a gigantesca “Fúria da Morte” no clímax, ampliado pela escala épica que o live-action permite. Além disso, a dinâmica cômica e terna entre o protagonista e a criatura – que se comporta como um misto de felino gigante e criança curiosa – permanece no coração da narrativa.

Mas o live-action também expande alguns aspectos: há um vislumbre mais aprofundado dos costumes vikings, do treinamento brutal de jovens para caçar dragões e da pressão que Soluço sofre de Stoico e dos outros guerreiros. Astrid (Nico Parker, de “The Last of Us”) surge não apenas como a melhor aluna do treinamento de matadores de dragão, mas também como alguém dividida entre a admiração crescente por Soluço e a lealdade aos valores tradicionais de seu povo. Essa nuance sutil reforça o arco romântico e de parceria que se desenrola entre Astrid e Soluço, com Nico Parker trazendo carisma e determinação à personagem.

Visualmente, “Como Treinar o Seu Dragão” deslumbra ao transpor para o mundo real os cenários e seres anteriormente animados. Filmado em locações costeiras exuberantes e penhascos escarpados (a produção teve locações na Irlanda e na Islândia, evocando com precisão a atmosfera do Mar do Norte), o filme entrega paisagens de encher os olhos. O filme é um raro exemplo de adaptação bem-sucedida, capaz de preservar o coração da animação ao mesmo tempo em que acrescenta novas dimensões.

 

 
 

NA TEIA DA ARANHA

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A comédia metalinguística se passa nos anos 1970 em Seul, recriando meticulosamente os bastidores de uma produção cinematográfica naquela época. Song Kang-ho, premiado ator de “Parasita”, lidera o elenco na pele do diretor Kim Yeol, um cineasta obcecado que acredita ter encontrado a ideia perfeita para melhorar seu filme já rodado: refilmar o final inteiramente. Convencido de que essa alteração transformará seu longa mediano em uma obra-prima, Kim reúne elenco e equipe em segredo no estúdio para, em apenas dois dias, refazer as cenas finais. Mas essa missão “simples” rapidamente descamba para um pandemônio hilário: interferências da censura governamental, egos de atores em conflito e absurdos logísticos convergem em um set onde tudo que pode dar errado efetivamente dá.

Sob a direção de Kim Jee-woon – aclamado cineasta de “Medo” e “Eu Vi o Diabo” – , a câmera segue Kim Yeol pelos corredores do estúdio, onde ele precisa driblar um fiscal do governo zeloso (pronto para banir qualquer cena “subversiva”) e ao mesmo tempo lidar com seu produtor, que ameaça cancelar tudo ao descobrir a filmagem não autorizada. O ambiente é quase claustrofóbico, com a ação situada majoritariamente dentro do estúdio de filmagem – um cenário ricamente detalhado que reproduz a estética setentista, de câmeras analógicas a cenários de papelão. Ao mesmo tempo, são apresentadas em preto e branco – num estilo de filme de época dentro do filme – as cenas da obra fictícia que ele está dirigindo.

Esse filme dentro do filme é um melodrama gótico ambientado em uma mansão, com traições, assassinatos e uma gigantesca teia de aranha cenográfica, tudo filmado à moda antiga, com enquadramentos clássicos e atuações teatrais. A montagem brinca brilhantemente com essas camadas: muitas vezes, o caos do mundo real encontra eco nas cenas da ficção e vice-versa. Por exemplo, quando a atriz principal (Im Soo-jung, de “Tempo de Amar”) discute ferozmente com o diretor sobre mudanças no roteiro, vemos em paralelo sua personagem discutindo no cenário do filme em preto e branco – as falas se complementam de forma cômica e reveladora. Oh Jung-se (“Sweet Home”) completa o elenco central como o galã do filme fictício, que se mete em confusões ao tentar esconder da esposa (que aparece de surpresa no set) um affair com uma jovem estrela.

As referências cinematográficas abundam. Kim Jee-woon homenageia filmes sobre filmes, de “Crepúsculo dos Deuses” a “Ed Wood”. As situações beiram o absurdo: em certo momento, para despistar o censor, a equipe literalmente encena uma gravação falsa de um filme educativo comunista, enquanto a verdadeira cena dramática é rodada às escondidas num canto escuro do estúdio. Essa sequência, hilária e tensa, mostra o virtuosismo do diretor em coreografar múltiplas ações simultâneas sem perder a clareza cômica.

 

 
 

JUNE E JOHN

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O cineasta francês Luc Besson – famoso por megaproduções de ação como “O Quinto Elemento” e “Lucy” – surpreende em seu retorno às telas, após vencer na Justiça uma acusação de abuso sexual. “June e John” é uma obra intimista que combina romance e aventura urbana com um toque de fantasia. Filmado de forma sigilosa durante a pandemia, inteiramente com um iPhone e orçamento enxuto, o longa representa um reencontro de Besson com suas raízes independentes e experimentais, evocando temas de seu elogiado “Angel-A” (2005).

O enredo acompanha John (Luke Stanton Eddy), um jovem preso na mesmice de um emprego sem futuro e dias previsíveis em Los Angeles, que tem a vida virada de cabeça para baixo ao conhecer June (Matilda Price), uma garota vibrante, destemida e um tanto excêntrica que parece determinada a viver cada dia como se fosse o último. Desde o primeiro encontro – um esbarrão fortuito numa noite inusitadamente deserta de LA – a conexão entre eles é elétrica. June arrasta John para fora de sua zona de conforto e, juntos, eles se lançam numa jornada desenfreada pela cidade, transgredindo regras e desafiando limites em nome de uma liberdade quase anárquica.

A sinopse evoca uma clássica história de amor rebelde, mas Besson a infunde com elementos de fábula moderna. John, acostumado à segurança tediosa, é imediatamente fascinado por June, cujo espírito livre beira o sobrenatural. Com cabelos tingidos de cores neon e um sorriso de quem guarda segredos, ela incorpora aquela figura do “anjo da desordem” que chega para despertar o protagonista. Os dois embarcam em uma série de aventuras pela madrugada: invadem uma piscina fechada para nadar sob a lua, dançam sozinhos na rua ao som de uma música imaginária e até pegam carona clandestina em um helicóptero de turismo que sobrevoa a cidade. Em meio a essas peripécias lúdicas, há também perigo real: June esconde problemas com a lei – há menções a um roubo impulsivo que ela cometeu e policiais à paisana que começam a persegui-la durante sua “noite de aventuras”.

Assim, o casal improvável se vê correndo não apenas para aproveitar cada segundo juntos, mas literalmente para escapar das autoridades, o que injeta tensão ao conto romântico. Em diálogos pontuais, June deixa escapar frases sugestivas sobre destino e efemeridade, dando a entender que ela talvez soubesse que aquela aventura teria hora para terminar. Essas pistas preparam o terreno para o terceiro ato, em que a realidade cobra seu preço. Quando o amanhecer se aproxima, “June e John” atinge seu clímax emotivo, que divide opiniões.

A fotografia em smartphone confere às cenas um ar documental e autêntico, como se estivéssemos acompanhando stories do Instagram de duas pessoas loucamente apaixonadas e insensatas. Besson abraça as limitações técnicas como vantagens criativas: planos tremidos e foco por vezes impreciso dão uma textura caseira que combina com a energia crua da história. Em certos momentos, a imagem vertical de celular é assumida deliberadamente, lembrando a estética de vídeos de redes sociais – e essa quebra ocasional do formato widescreen tradicional surpreende e envolve o espectador de forma inusitada. No entanto, o filme não abre mão do virtuosismo visual característico do diretor: cores vibrantes explodem na tela, dos letreiros de neon das ruas de Los Angeles ao figurino chamativo de June (que mistura estética punk e pin-up). Mas é a química entre os atores estreantes Matilda Price e Luke Stanton Eddy que compõe o alicerce emocional do filme.

 

 
 

O GRANDE GOLPE DO LESTE

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A comédia alemã se passa nos dias agitados que antecederam a reunificação da Alemanha, em 1990, revelando com humor e sagacidade as oportunidades e absurdos que emergiram naquele momento histórico. O filme marca a estreia na direção de Natja Brunckhorst – ex-atriz célebre por protagonizar o cult “Eu, Christiane F.” (1981) – , que demonstra um olhar bem-humorado para as heranças do passado socialista. A história se inicia na Berlim Oriental às vésperas da queda do muro. Em um bunker militar abandonado, uma família faz uma descoberta estonteante: pilhas e pilhas de cédulas de ostmarks (a moeda da RDA) armazenadas e esquecidas. O problema? Em questão de dias, aquele dinheiro se tornará papel sem valor devido à unificação monetária com o marco ocidental. Surge, então, um plano maluco: Maren (vivida por Sandra Hüller, de “Toni Erdmann”), seu marido Robert (Max Riemelt, conhecido pela série “Sense8”) e o amigo de infância dela, Volker (Ronald Zehrfeld, de “Phoenix”), decidem recolher o máximo possível do dinheiro e correr contra o relógio para convertê-lo em algo útil antes que seja tarde demais.

A sinopse evolui em ritmo acelerado, típico de filmes de golpe (heist movies) misturado a sátira política. O trio de protagonistas rapidamente envolve a comunidade inteira do prédio onde moram numa empreitada coletiva: sob o lema de solidariedade comunista, eles dividem a montanha de ostmarks entre os vizinhos para que todos possam gastá-la a tempo. Inicialmente, os estratagemas lembram uma comédia de erros engenhosa: os personagens saem pelas ruas comprando eletrodomésticos e qualquer bem durável de vendedores que ainda aceitam a moeda antiga, num esforço quase surreal de transformar papel em produtos tangíveis. Em seguida, surge a ideia mais audaciosa: localizar ex-funcionários do regime comunista (diplomatas e militares) que, por lei, teriam prazos especiais para trocar ostmarks por marcos ocidentais mesmo após o prazo regular. Paralelamente a essas peripécias financeiras, Maren, Robert e Volker precisam despistar autoridades e explicar a origem do súbito enriquecimento – o que rende cenas hilariantes de improviso e mentiras deslavadas. A dinâmica do trio é apimentada por tensões pessoais: Maren e Volker têm um passado mal resolvido, criando um leve triângulo amoroso que se desenrola em meio ao caos.

Natja Brunckhorst ambienta “O Grande Golpe do Leste” num cenário de transformação social profunda, e o filme aproveita esse contexto para fazer comentários perspicazes. A reconstituição de época é meticulosa: figurinos, veículos e objetos trazem de volta o visual da Alemanha Oriental no fim dos anos 1980, enquanto a direção de arte contrasta os ambientes sóbrios e modestos do leste com o brilho consumista das vitrines ocidentais que começavam a dominar. Essa transição fica evidente quando personagens adentram lojas para gastar as cédulas – a euforia de finalmente poder acessar bens de consumo antes inacessíveis se mistura à melancolia de ver sua cultura material desaparecer.

Em termos de estilo, Brunckhorst adota um tom leve e nostálgico, lembrando clássicos como “Adeus, Lênin!” (2003), outra comédia que lidou com a reunificação, e evocando até o humor despretensioso das comédias inglesas da Ealing Studios (a premissa de encontrar dinheiro prestes a perder valor remete a filmes como “O Quinteto da Morte”). Ao concluir com uma nota agridoce (nem todos os planos saem como esperado, mas há ganho em solidariedade), o filme reafirma sua mensagem sutil sobre união comunitária e reinvenção diante do fim de uma era.

 

 
 

SEGREDOS

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O drama italiano leva para as telas a complexidade de confidências íntimas e seus efeitos ao longo de uma vida. Adaptado do romance homônimo de Domenico Starnone, o filme vem sendo aclamado na Itália como a obra mais madura e sofisticada de Daniele Luchetti até hoje. Conhecido por obras como “Meu Irmão é Filho Único” e “Laços” (outra adaptação literária de Starnone), o diretor constrói um thriller emocional sobre amor, culpa e o poder que um segredo pode exercer sobre duas pessoas.

No centro da história está Pietro (Elio Germano, de “A Vida Solitária de Antonio Ligabue”), um professor de 33 anos idealista e carismático, muito querido por seus alunos na periferia de Roma. Ao reencontrar Teresa (Federica Rosellini, de “O Fascínio”), uma ex-aluna dez anos mais jovem, Pietro se envolve romanticamente com ela, iniciando uma relação intensa. Teresa é brilhante, ousada e também imprevisível – uma jovem que desafia convenções e adora testar os limites de Pietro, colocando em xeque suas certezas. Certa noite, movida tanto por afeto quanto por uma pitada de crueldade lúdica, ela propõe um jogo que mudará para sempre a vida de ambos: que cada um revele ao outro seu segredo mais obscuro, algo nunca antes confessado a ninguém.

A partir dessa premissa aparentemente simples – “você guardaria o meu pior segredo?” –, o filme explora a sensação de mútua vulnerabilidade. A relação dos dois não sobrevive intacta a esse peso. Após algum tempo juntos, circunstâncias da vida os separam – Pietro segue carreira acadêmica, casa-se com outra mulher (Nadia, interpretada por Vittoria Puccini) e alcança sucesso profissional, enquanto Teresa desaparece de seu cotidiano. Mas o pacto selado entre eles, aquele segredo trocado, continua a exercer influência silenciosa.

Anos depois, quando Pietro já é um escritor renomado e pai de família, Teresa ressurge inesperadamente e o “fantasma” daquele segredo volta a pairar sobre ambos. A narrativa, estruturada de forma não-linear, alterna fases da vida de Pietro – juventude apaixonada e maturidade introspectiva – para mostrar como a consciência pesada e a memória afetiva moldam suas escolhas. Em vários momentos, cenas do passado surgem quase como assombrações em meio ao presente, especialmente quando Pietro se debate com dilemas éticos e pessoais ligados ao que escondeu do mundo. A trilha sonora original, composta por Thom Yorke (vocalista do Radiohead), é um capítulo à parte: suas composições minimalistas e atmosféricas envolvendo piano e cordas acentuam a tensão psicológica nas cenas-chave, amplificando a sensação de que algo pulsante está por baixo da superfície tranquila dos diálogos.

“Segredos” teve estreia mundial no Festival de Roterdã 2024, onde recebeu elogios por seu roteiro refinado e pela direção madura de Luchetti. De lá para cá, o filme conquistou o público italiano: foi um sucesso de bilheteria na Itália, atraindo mais de 300 mil espectadores e arrecadando cerca de 2 milhões de euros – um feito notável para um drama adulto, indicado inclusive ao Globo de Ouro italiano de Melhor Roteiro. Inserido na rica tradição italiana de dramas literários e psicanalíticos, lembra as obras de autores como Luigi Pirandello (na exploração das máscaras sociais) e as adaptações de Elena Ferrante (pelo mergulho nas contradições íntimas), e evidencia a vitalidade do cinema italiano atual em contar histórias universais de forma sofisticada, sendo um retrato contundente do poder – construtivo e destrutivo – que a confiança absoluta entre duas pessoas pode ter.

 

 
 

SÍNDROME DA APATIA

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O cineasta grego Alexandros Avranas, conhecido por filmes provocativos como “Miss Violence” (pelo qual venceu o Leão de Prata de direção no Festival de Veneza em 2013), aborda o fenômeno da “Síndrome da Resignação” – uma condição documentada em crianças refugiadas que, diante de traumas insuportáveis, entram em estado catatônico. O filme ambientado em 2018 acompanha uma família russa exilada na Suécia que enfrenta o pesadelo burocrático do pedido de asilo negado. Sergei e Natalia, os pais, fogem de perseguições políticas em seu país natal e buscam recomeço com as duas filhas pequenas, Katja e Alina, no ambiente frio e austero de Gotemburgo. Quando as autoridades suecas rejeitam o asilo – desacreditando que estejam realmente sob ameaça –, a filha mais nova, Katja, subitamente desmorona e entra em um “coma” misterioso, manifestação extrema da síndrome que dá título ao filme.

A trama se desenvolve como um pesadelo distópico surpreendentemente calcado na realidade. Ao descobrir que Katja permanece prostrada, totalmente alheia ao mundo, Sergei e Natalia se desesperam. Dispostos a tudo para salvar a filha, eles encaram uma corrida contra o tempo para reverter a decisão de deportação e provar que podem oferecer segurança à criança. Avranas conduz o enredo quase como um thriller dramático: de um lado, a luta burocrática dos pais contra um sistema de imigração implacável; de outro, a batalha íntima para “acordar” Katja desse estado apático. Elementos de suspense e tragédia familiar se misturam quando o diretor revela, em flashbacks pontuais, o motivo da perseguição no país de origem: Sergei, um diretor escolar idealista, se recusou a banir livros pró-democracia de sua instituição – afrontando diretamente os interesses do regime autoritário russo e desencadeando retaliações violentas contra sua família. Essa subtrama política conecta a condição clínica de Katja aos traumas da opressão política e indiferença burocrática que a família enfrenta.

À frente da direção, Alexandros Avranas imprime uma atmosfera gélida e inquietante, realçada pela fotografia de tons estéreis de Olympia Mytilinaiou, que retrata a Suécia com paletas dessaturadas e cenários impessoais. Os enquadramentos remetem a um clima levemente distópico: corredores de órgãos públicos e casas de acolhimento surgem quase como cenários teatrais minimalistas, reforçando o sentimento de alienação dos refugiados naquele país estranho. Essa escolha estética dialoga com o tom do filme, que oscila entre o drama social e a alegoria sombria. No elenco, a russa Chulpan Khamatova (“Adeus, Lênin!”) encarna Natalia com uma combinação de fragilidade e força materna, enquanto Johannes Bah Kuhnke (“Força Maior”) interpreta o oficial sueco cuja frieza burocrática personifica a face desumana do sistema de asilo.

 

 
 

PRÉDIO VAZIO

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O terror brasileiro marca um novo passo na carreira do capixaba Rodrigo Aragão, conhecido por revitalizar o cinema de horror nacional com obras repletas de efeitos especiais práticos e folclore (como “Mangue Negro” e “A Mata Negra”). Desta vez, Aragão troca as florestas e cenários rurais por um ambiente urbano opressivo, encontrando outras referências: a obra é uma homenagem assumida ao horror japonês dos anos 2000, daqueles de fantasmas de longos cabelos pretos e maldições urbanas, à la “O Chamado” e “O Grito”.

A narrativa acompanha Luna (Lorena Corrêa), uma jovem determinada que investiga o misterioso desaparecimento de sua mãe na cidade litorânea de Guarapari, Espírito Santo. A mãe sumiu sem deixar vestígios no último dia de Carnaval – uma época de festa que contrasta ironicamente com o luto pessoal de Luna. Seguindo pistas difusas, a protagonista e seu namorado Fábio (Caio Macedo) vão parar em um edifício antigo, teoricamente abandonado, bem no coração da cidade. Apesar da fachada decadente e dos corredores silenciosos, Luna sente que algo habita aquele prédio – e não está errada. Ao adentrar os andares desertos em busca da mãe, o casal se depara com almas atormentadas e forças malignas à espreita em cada sombra.

Aragão constrói tensão com planos longos pelos corredores em penumbra, silêncio quebrado apenas por goteiras e rangidos, e a sensação constante de que Luna e Fábio estão sendo observados. A influência do cinema asiático se faz notar no ritmo pausado e na construção de expectativa – o medo nasce do que não se vê. Quando o terror irrompe, é através de aparições fantasmagóricas e alucinações angustiantemente tangíveis. O prédio revela não estar tão vazio assim: espíritos inquietos de antigos moradores manifestam-se nos apartamentos escuros. Gilda Nomacce, veterana do horror nacional, surge em um papel macabro como uma vizinha espectral que perambula pelos andares recitando cantigas, enquanto Rejane Arruda encarna uma presença maligna vinculada ao passado de Luna. Em determinado momento, passado e presente colidem num pesadelo febril: paredes descascadas dão lugar a cenas do Carnaval anterior, e Luna vislumbra o que pode ter acontecido com sua mãe, sugerindo um crime violento encoberto pelos festejos.

Um aspecto interessante é a origem do projeto: “Prédio Vazio” nasceu como um “filme-escola”. Aragão realizou oficinas de cinema com jovens talentos e, a partir de oito workshops, concretizou este longa, integrando aprendizes na produção. Essa iniciativa confere ao filme uma energia colaborativa, embora sob a condução experiente do diretor. O resultado foi reconhecido em sua première: na 28ª Mostra de Cinema de Tiradentes em 2025, “Prédio Vazio” conquistou o Prêmio Retrato Filmes, que lhe garantiu distribuição nacional e apoio financeiro para divulgação.

Críticos ressaltaram a originalidade do longa em mesclar referências globais do terror com elementos genuinamente brasileiros. O cenário de Guarapari pós-verão – uma cidade turística esvaziada quando a alta temporada termina – serve de metáfora para abandono e melancolia, compondo o subtexto social sob o enredo sobrenatural. Em meio aos sustos, o filme debate o descaso urbano e a solidão nas metrópoles: o “prédio vazio” é também símbolo de espaços públicos negligenciados e histórias esquecidas.

 

 
 

EROS

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O documentário lança um olhar intimista sobre a sexualidade ao explorar o universo dos motéis no Brasil. Dirigido pela cineasta anglo-brasileira Rachel Daisy Ellis, em sua estreia em longas-metragens, o filme ganhou destaque ao ser exibido na mostra competitiva da Mostra de Tiradentes e em festivais internacionais como o CPH:DOX, um dos mais prestigiados eventos de documentários na Europa. A produção chamou atenção pela ousadia nos bastidores: Ellis convidou casais reais para filmarem a si mesmos durante uma noite em suítes de motel, utilizando apenas seus próprios celulares. Esse processo de autorregistro resultou em material autêntico e provocativo, permitindo que os participantes se tornassem “diretores” de suas experiências íntimas. O resultado é um mosaico de dez histórias captadas em diferentes motéis pelo país, costuradas em um relato que mescla exibicionismo e vulnerabilidade na tela.

A diretora Rachel Daisy Ellis, conhecida até então por seu trabalho como produtora ao lado de cineastas como Gabriel Mascaro (“Boi Neon”, “Divino Amor”), organizou o vasto material pessoal com montador Matheus Farias em uma estrutura coesa, costurando as histórias para enfatizar pontos em comum sobre intimidade e relacionamentos. Como muitas cenas foram filmadas pelos participantes com celulares diferentes, o filme apresenta um estilo visual variado: texturas e qualidades de imagem oscilam conforme o dispositivo usado, conferindo autenticidade crua e um aspecto quase experimental às sequências. Essa estética fragmentada reforça o caráter voyeurístico da experiência, ao mesmo tempo que respeita a individualidade de cada casal. Se ainda restou dúvidas sobre o conteúdo: o filme é recomendado apenas para maiores de 18 anos.