Obra “libertina” e sem respeito
O filme “Onda Nova”, dirigido por José Antonio Garcia e Francisco “Ícaro” Martins, retorna aos cinemas na quinta-feira (27/3) com distribuição da Vitrine Filmes, após mais de quatro décadas de controvérsia. Censurado em 1983 pela Divisão de Censura de Diversões Públicas do Ministério da Justiça, o longa foi acusado por funcionários da ditadura militar de promover “libertinagem” e “desrespeito”.
O veto, assinado pela diretora do órgão, Solange Hernandes, impediu a liberação comercial do filme, citando cenas com “exibição de pelos pubianos”, “de pênis”, “prática de aborto”, “carícias e beijos lésbicos” e “uso de maconha”. Um dos censores chegou a recomendar que se “mantivesse aceso o sinal vermelho para filmes dessa laia”.
Apenas uma exibição ocorreu na Mostra Internacional de Cinema de São Paulo antes da interdição. “Não pediram cortes pontuais, eles acharam o filme inteiro um absurdo. Só liberaram meses depois”, contou o diretor Francisco Martins, que à época assinava como Ícaro Martins, ao jornal O Globo deste domingo (22).
A influência da Boca do Lixo
Garcia e Martins formaram a dupla criativa após deixarem a Escola de Comunicações e Artes da USP. À procura de financiamento para o primeiro longa, não conseguiram apoio das grandes produtoras brasileiras. A alternativa foi a Olympus Filme, sediada na região paulistana da Boca do Lixo, conhecida pelas pornochanchadas de baixo orçamento e alto retorno comercial.
O produtor Adone Fragano topou bancar o projeto, com uma fórmula específica: filmagem em três semanas, no máximo três locações e a inclusão de 15 cenas de sexo, sendo cinco mais longas e pelo menos uma de teor lésbico. Segundo Martins, “a história a gente podia fazer o que quisesse. Eles eram super objetivos e, de certa forma, davam muita liberdade”.
Desse acordo nasceu “O Olho Mágico do Amor” (1982), que inaugurou a chamada “Trilogia do Desejo”, completada por “Onda Nova” e “A Estrela Nua” (1984), todos estrelados por Carla Camurati. O primeiro filme obteve sucesso imediato. “Só a renda do Rio de Janeiro pagou o filme”, recorda Martins.
Temas polêmicos
Ambientado no fictício Gayvotas Futebol Clube, o enredo acompanhava a rotina de jogadoras em um contexto em que o futebol feminino ainda enfrentava forte preconceito. O elenco reunia nomes como Carla Camurati, Cristina Mutarelli, Cida Moreira, Regina Casé e Tania Alves, além de participações do cantor Caetano Veloso, do jogador Walter Casagrande e do locutor Osmar Santos interpretando a si mesmos.
Lançado no mesmo ano em que o futebol feminino foi regulamentado no Brasil, após décadas de proibição imposta por decreto do Estado Novo, o longa usava o esporte como metáfora para tratar da emancipação das mulheres. “Era um filme feminista, feito sob a ótica feminina”, afirmou Carla Camurati para O Globo. “O ‘Onda Nova’ já namorava há algum tempo com esse espaço que a mulher precisa ocupar no mundo, o que naquela época foi expresso pelo futebol”.
Além disso, “Onda Nova” abordava temas como aborto, homossexualidade e uso de drogas de forma natural, o que destoava do padrão das pornochanchadas da época. Martins reforça que a dupla evitou os estereótipos tradicionais do gênero. “O Zé Antonio e eu tínhamos um acordo: aceitaríamos fazer as cenas de sexo, mas não queríamos entrar no esquema moralista da Boca do Lixo”, afirma. “As pornochanchadas eram preconceituosas. O homossexual era sempre a ‘bicha louca’ ridicularizada. A mulher era adúltera, tinha a figura do ‘corno’… Não eram todos, havia bons filmes, mas muitos reforçavam preconceitos. E eu acho que a gente conseguiu driblar essa leitura.”
De proibido à cult
A expectativa para “Onda Nova” foi prejudicada pela censura e pela transformação do mercado da Boca do Lixo, que na época migrava do erotismo para o sexo explícito. Quando finalmente liberado, o longa foi considerado softcore em relação a produções como “Oh! Rebuceteio” (1984) e “Senta no Meu que Eu Entro na Tua” (1985), e foi considerado um fracasso.
Entretanto, o filme foi redescoberto a partir de 1998, com exibições no Canal Brasil durante o programa “Como Era Gostoso o Nosso Cinema”, dedicado às pornochanchadas. Agora, volta com cópia restaurada em 4K graças à produtora Julia Duarte, à Aclara Produções Artísticas e à família de José Antonio Garcia (1955-2005), com apoio da Cinemateca Brasileira.
Julia Duarte, sobrinha de Garcia, relatou a transformação da percepção sobre o filme. “Mesmo na minha família, o ‘Onda Nova’ era considerado meio maldito. Eu só vi o filme depois que o Zé morreu”, contou. “Tem sido bem louco ver a reação do público jovem. Disseram que ele tem a ver com o TikTok por causa da narrativa não linear.”
Após a reestreia no Festival de Locarno, na Suíça, em julho de 2023, e na Mostra de São Paulo, em outubro, Julia agora trabalha na restauração dos demais filmes da trilogia. “A ideia é que ‘A Estrela Nua’ e ‘O Olho Mágico do Amor’ estejam restaurados no ano que vem. Em dezembro o Zé Antonio faria 70 anos e vai completar 20 anos da morte dele. Então queremos fazer uma mostra dos filmes e levar para festivais internacionais.”