O cinema brasileiro não se resumiu a “Ainda Estou Aqui” em 2024, destacando outros filmes premiados em festivais internacionais. A provável indicação ao Oscar do drama de Walter Salles culmina um ano de vasto reconhecimento para as produções nacionais. Confira abaixo os melhores títulos lançados no período.
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O drama de Walter Salles, escolhido pelo Brasil para tentar uma indicação ao Oscar de Melhor Filme Internacional, conta a história de Eunice Paiva, mãe de cinco filhos, que tenta descobrir o paradeiro de seu marido, Rubens Paiva, após ele ser levado de casa pela polícia em 1971, durante a ditadura no Brasil. Ao mesmo tempo, ela também busca manter os filhos protegidos da notícia do desaparecimento. A história real é baseada no livro do filho do casal, o escritor Marcelo Rubens Paiva.
A produção marca o retorno de Salles ao cinema narrativo após 12 anos. O papel principal é desempenhado por Fernanda Torres, com quem o diretor trabalhou em “Terra Estrangeira” (1995) e “O Primeiro Dia” (1998), e também há um epílogo com participação da mãe da atriz, Fernanda Montenegro, que foi indicada ao Oscar ao ser dirigida por Salles em “Central do Brasil” (1998). As duas compartilham a mesma personagem no filme e, segundo a crítica internacional, pode ser a vez da filha chegar ao Oscar. Vale lembrar que Fernanda Torres já venceu o Festival de Cannes por “Eu Sei que Vou Te Amar” (1986), de Arnaldo Jabor. O elenco também destaca Selton Mello (“O Palhaço”) como Rubens Paiva.
Em sua première mundial, o filme rendeu o troféu de Melhor Roteiro para a dupla Murilo Hauser e Heitor Lorega no Festival de Veneza, onde foi recebido sob mais de 10 minutos de aplausos. Elogiado pela crítica internacional, atingiu 91% de aprovação no Rotten Tomatoes, que faz uma média das críticas de cinema publicadas em inglês, e possui chances reais de chegar ao Oscar 2025. Para completar, é o maior sucesso nacional desde a pandemia, visto por mais de milhões de espectadores.
LEVANTE
Exibido no Festival de Cannes e no Festival de Londres, o longa de estreia de Lillah Halla aborda a temática do aborto através da história de Sofia, uma jovem de 17 anos em ascensão no vôlei, diante de uma gravidez indesejada que coloca em risco seu futuro como atleta. O drama aumenta quando Sofia tenta interromper a gestação de maneira clandestina, já que aborto é criminalizado no Brasil, e se torna alvo de um grupo conservador decidido a expô-la.
O filme é abertamente pró-aborto e apresenta a busca de Sofia por uma solução para sua situação, enfrentando a oposição de fundamentalistas religiosos e a incompreensão da sociedade. Agoniada, ela recebe apoio da namorada e colegas de time.
A trama explora diversos temas importantes, como a pressão a que mulheres se sujeitam nos esportes e as citadas criminalização do aborto e ação agressiva do conservadorismo, além da sororidade na comunidade queer. O elenco diversificado inclui personagens negras, lésbicas, bissexuais e trans, refletindo a diversidade da juventude brasileira. Com um elenco repleto de novos rostos, o longa destaca a expressiva Ayomi Domenica no papel principal, ao lado de nomes mais conhecidos. O pai de Sofia, interpretado por Rômulo Braga (“DNA do Crime”), também desempenha um papel importante na trama, apoiando a filha em sua decisão, assim como a técnica do time de vôlei, interpretada por Grace Passô (“Onde Está Meu Coração”).
“Levante” acumula mais de uma dezena de prêmios, incluindo o Prêmio da Crítica no Festival de Cannes, Melhor Filme no Festival de Biarritz, Melhor Filme Ibero-Americano no Festival de Palm Springs, Melhor Filme no Mix Brasil e Melhor Direção no Festival do Rio.
CIDADE; CAMPO | VOD*
O drama premiado de Juliana Rojas (“As Boas Maneiras”) aborda a migração entre os ambientes urbano e rural em duas histórias de sinais trocados. Na primeira, Joana migra para São Paulo após o rompimento de uma barragem de dejetos de mineração inundar sua cidade natal. Na capital, ela enfrenta as dificuldades do trabalho precarizado, se envolvendo em uma luta coletiva por melhores condições junto com seus novos colegas de emprego. Na segunda história, Flávia se muda com Mara, sua companheira, para a fazenda que herdou do pai, falecido recentemente. Mas ao tentar se adaptar à vida no campo, o casal se defronta com os desafios de um ambiente hostil e desconhecido, além de elementos sobrenaturais.
O quarto longa-metragem de ficção de Rojas foi rodado na cidade de São Paulo e na zona rural do Mato Grosso do Sul. O lançamento aconteceu no Festival de Berlim, onde encantou a crítica internacional e recebeu o prêmio de Melhor Direção na seção Encounters, criada para fomentar trabalhos ousados de cineastas independentes e inovadores. O elenco destaca Fernanda Vianna (“Justiça”), Mirella Façanha (“Samantha!”) e Bruna Linzmeyer (“Pantanal”).
MAIS PESADO É O CÉU
O novo “árido movie” cearense de Petrus Cariry (“Mãe e Filha”) explora a jornada de dois personagens isolados no sertão. Antônio, interpretado por Matheus Nachtergaele (“Cine Holliúdy”), é um homem solitário que encontra um bebê abandonado e decide cuidar dele. Teresa, vivida por Ana Luiza Rios (“Cabeça de Nêgo”), é uma mulher que também enfrenta suas próprias dores e traumas e decide ajudar Antônio a cuidar da criança. A história não só destaca a beleza árida do sertão nordestino, belamente fotografado por Cariry, mas também a jornada dos protagonistas, enquanto eles tentam construir uma família improvável em meio às adversidades.
Vencedor de quatro Kikitos no Festival de Gramado, o filme é ambientado em locais marcantes do Ceará, como os municípios de Quixadá e Nova Jaguaribara. Este último, conhecido por ter sido submerso pela construção do Açude Castanhão, é quase um personagem da trama, simbolizando a perda e o deslocamento, que ecoam as próprias experiências dos personagens em busca de um novo começo. O passado em comum, para eles, são as memórias da cidade submersa no fundo da represa, que não passam de uma lembrança de tempos melhores. A realidade, porém, é dura de presenciar.
MALU
Ambientado no Rio de Janeiro dos anos 1990, o drama acompanha a vida de Malu Rocha, interpretada por Yara de Novaes (“Todas as Mulheres do Mundo”). Uma ex-atriz de sucesso que se encontra desempregada, Malu vive uma crise pessoal em uma casa simples, dividindo o espaço com sua mãe conservadora e enfrentando dificuldades na relação com a filha. Inspirado na vida real da atriz Malu Rocha (1946-2013), mãe do diretor Pedro Freire (da série “Sete Vidas”), o filme aborda temas de conflito geracional e busca por identidade, explorando as tensões e vínculos entre três gerações de mulheres da mesma família.
Exibido pela primeira vez no Festival de Sundance deste ano, o longa de estreia de Pedro Freire foi aclamado pelo público, atingindo 100% de aprovação no site Rotten Tomatoes, além de receber diversos prêmios em festivais brasileiros, incluindo Melhor Roteiro e Melhor Atriz no Festival do Rio.
ESTRANHO CAMINHO
O novo drama de Guto Parente (“Inferninho”) acompanha David (Lucas Limeira, de “Cabeça de Nêgo”), um jovem cineasta que retorna a Fortaleza, sua cidade natal, para apresentar seu novo filme em um festival. No entanto, com o avanço da pandemia de Covid-19, os cinemas são fechados e o evento é cancelado. Surpreso e decepcionado, ele decide aproveitar a viagem para visitar o pai (Carlos Francisco, de “Bacurau”), com quem não fala há mais de dez anos, e buscar um abrigo na casa dele durante o lockdown. Mas a estadia é perturbada por estranhos acontecimentos, que destacam a sensação de isolamento e conflitos resultantes do confinamento. A narrativa ainda mescla cenas do filme experimental do personagem com a história principal, aumentando a sensação de estranhamento.
A produção teve uma grande carreira internacional, exibida e premiada em vários festivais ao redor do mundo. Venceu o Festival de Tribeca, criado por Robert De Niro em Nova York, o Festival de Havana, em Cuba, e o troféu de Melhor Roteiro no Festival do Rio do ano passado.
AVENIDA BEIRA-MAR | VOD*
O drama brasileiro narra a história de Rebeca, uma menina de 13 anos que se muda com a mãe para a praia de Piratininga, em Niterói. Lá, ela conhece Mika, uma garota trans da mesma idade, e juntas desenvolvem uma amizade que desafia preconceitos e normas sociais. Exibido no Festival do Rio, a obra dos estreantes Maju de Paiva e Bernardo Florim recebeu o Prêmio Félix de melhor filme LGBTQIAP+. Além disso, foi premiado no Festival Internacional de Cinema de Guadalajara, no México, com o troféu de Melhor Direção.
A trama de diversidade e inclusão traz em seu elenco Andréa Beltrão (“Hebe”), Isabel Teixeira (“Pantanal”), as meninas Milena Pinheiro e Milena Gerassi, e marcou a despedida do ator Emiliano de Queiroz (“Alma Gêmea”), que morreu em outubro passado aos 88 anos.
SEM CORAÇÃO | NETFLIX
O primeiro longa da dupla Nara Normande e Tião venceu no ano passado os prêmios de Melhor Filme Brasileiro de Diretor Estreante na Mostra de São Paulo, além de Melhor Filme de Temática LGBTQIA+ e Melhor Fotografia no Festival do Rio. A obra é uma extrapolação do curta de mesmo nome que os dois dirigiram em 2014. A trama se passa no verão de 1996, à beira-mar de Alagoas, e segue Tamara, uma jovem que se prepara para deixar sua pacata vila de pescadores e partir para estudar em Brasília. Em meio aos últimos dias com sua família e amigos, ela conhece uma adolescente misteriosa apelidada de “Sem Coração” por causa de uma cicatriz no peito. Ao longo do verão, Tamara se sente cada vez mais atraída por essa garota enigmática, embarcando em uma jornada de descoberta pessoal e amor proibido.
De forma sensível, o filme explora temas como amadurecimento, identidade, sexualidade e os desafios da vida em uma comunidade rural. A trama é conduzida pelas atuações impecáveis da estreante Maya de Vicq e Eduarda Samara (“Bacurau”), que transbordam química em tela, ao lado dos experientes Maeve Jinkings (“Pedágio”), Erom Cordeiro (“DNA do Crime”) e Kayky Brito (“Socorro, Virei uma Garota!”).
SAUDADE FEZ MORADA AQUI DENTRO
O drama dirigido por Haroldo Borges (“Filho de Boi”) é centrado em Bruno (Bruno Jefferson), um adolescente de 15 anos que vive no interior da Bahia e luta com uma doença degenerativa que o levará à cegueira. Bruno, que até então ignorava a violência e o preconceito da cultura machista em que está inserido, passa a enfrentar não só as dificuldades de sua condição física, mas também as complexidades emocionais da adolescência. O filme aborda a aceitação das diferenças, o preconceito, e o impacto da deficiência visual na vida de Bruno, ao mesmo tempo em que explora questões de identidade e os desafios de enxergar o mundo “com outros olhos”. A narrativa é carregada de simbolismo e emoção, comparando a cegueira literal que afeta o protagonista com sua realidade.
Vencedor do Festival de Mar del Plata, na Argentina, e amplamente aclamado pela crítica estrangeira, o longa foi um dos seis finalistas do comitê da Academia Brasileira de Cinema que determinará o representante do Brasil na disputa do Oscar 2025 de Melhor Filme Internacional.
AUMENTA QUE É ROCK’N’ROLL | VOD*
O filme aborda a história da rádio Fluminense FM nos anos 1980. Conhecida como “a Maldita”, a rádio foi fundada em 1982 e se tornou a primeira FM especializada em rock no Brasil – um ano antes da gaúcha Ipanema FM e três anos antes da paulista 89 FM. A emissora chegou a se tornar a segunda rádio mais ouvida no Brasil e tocava em sua programação até fitas demo de bandas novas, entre elas Legião Urbana e Biquíni Cavadão – bem antes de suas primeiras gravações oficiais. O resumo cinematográfico é baseado no livro autobiográfico de Luis Antonio Mello, fundador da “Maldita”, que deixou a rádio depois do primeiro Rock in Rio, em 1985. Acompanhando o apogeu e a queda da geração mais popular do rock brasileiro, a Fluminense durou apenas até 1990.
“Aumenta que é Rock’n’Roll”, cujo título lembra uma música da época, gravada por Celso Blues Boy (“Aumenta que Isso Aí é Rock’n’Roll”), tem direção de Tomás Portella (“Operações Especiais”, “Desculpe o Transtorno”) e destaca em seu elenco Johnny Massaro (“O Filme da Minha Vida”) como Luiz Antônio, um radialista atrapalhado, que inesperadamente se vê no comando de uma estação de rádio falida e caindo aos pedaços. Contando apenas com sua paixão pelo rock, mas com estratégias inovadoras (como locução exclusivamente feminina) e uma equipe muito louca, ele cria a Fluminense FM. Apesar do tom de comédia, a produção retrata a essência da revolução musical dos anos 1980 – com direito a uma trilha sonora bastante representativa da época.
O elenco também conta com Marina Provenzano (“Bom Dia, Verônica”), Adriano Garib (também de “Bom Dia, Verônica”), George Sauma (“Sai de Baixo: O Filme”), João Vitor Silva (“Impuros”) e Flora Diegues (“O Grande Circo Místico”). Por sinal, este foi o último trabalho de Flora, filha do diretor Cacá Diegues e da produtora Renata Magalhães, que faleceu em 2019, vítima de um câncer.