O diretor Paul Morrissey, conhecido por filmes cult e uma figura central da cena artística de Nova York do século 20, morreu nesta segunda-feira (28/10) aos 86 anos, no Hospital Lenox Hill, em Nova York, após complicações de uma pneumonia. A informação foi confirmada por seu arquivista, Michael Chaiken, ao The Hollywood Reporter. Conhecido por clássicos do cinema independente como “Flesh”, “Trash”, “Heat”, “Carne para Frankenstein” e “Sangue para Drácula”, Morrissey marcou época no cinema alternativo entre os anos 1960 e 1980.
O começo underground
O trabalho do diretor também é lembrado pela colaboração com o artista pop Andy Warhol. A parceria, iniciada em 1965, levou Morrissey a coordenar a publicidade e produção de filmes na famosa Factory, QG artístico de Warhol, até 1973. Nesse período, os dois produziram obras que nunca foram além do circuito underground, como “Space” e “My Hustler” (1965), “San Diego Surf” e “Lonesome Cowboys” (1968), que destacavam personagens marginais como dependentes químicos e jovens das ruas.
Nesta época, Morrissey também foi responsável pela descoberta da banda The Velvet Underground, liderada pelo cantor Lou Reed, e pela co-fundação da revista Interview, consolidando sua influência na cultura pop.
Trilogia da Carne
Os filmes mais famosos dessa fase inicial do diretor são a “Trilogia da Carne”, composta por “Flesh” (1968), “Trash” (1970) e “Heat” (1972), considerados as maiores contribuições de Morrissey ao cinema. Os três dramas, estrelados por Joe Dallesandro, examinavam personagens em situações extremas – um prostituto, um viciado e um astro decadente – , com uma abordagem realista que desafiava as normas cinematográficas da época.
Drácula e Frankenstein
Nos anos 1970, Morrissey parodiou o gênero de terror com os filmes “Carne para Frankenstein” (1973) e “Sangue para Drácula” (1974), ambos produzidos na Itália. Esses filmes, embora mantivessem a assinatura satírica e experimental de Morrissey, exploravam elementos de horror gótico em histórias recheadas de referências à cultura pop e toques de humor ácido.
“Carne para Frankenstein” (também conhecido como “Andy Warhol’s Frankenstein”) apresentava uma versão distorcida da história do Dr. Frankenstein, que busca criar uma nova raça superior a partir de pedaços de corpos. Morrissey combinou cenas de violência gráfica e efeitos de horror com um tom satírico, criticando a obsessão pelo corpo perfeito e as perversões da ciência. O filme ganhou notoriedade por suas sequências viscerais e o uso inovador do 3D, algo raro para a época.
“Sangue para Drácula” (ou “Andy Warhol’s Dracula”) traz uma abordagem similar ao clássico vampírico, com Drácula em busca de sangue de jovens virgens para sobreviver. No entanto, ao chegar à Itália, o personagem se depara com uma sociedade em decadência moral. O tom irônico e grotesco permeia o filme, que mistura horror com crítica social. As atuações carregadas e o visual excessivo fizeram com que “Sangue para Drácula” se tornasse cultuadíssimo e o filme mais conhecido do diretor.
A sombra de Andy Warhol
A obra de Morrissey, especialmente essa fase inicial associada a Warhol, consolidou sua reputação como um cineasta ousado, disposto a romper com as convenções e explorar as fraquezas da sociedade contemporânea. No entanto, Morrissey sempre se mostrou crítico quanto ao crédito que Warhol recebeu nessas produções.
Em uma entrevista ao Bright Lights Film Journal, em fevereiro de 2020, declarou: “Não diga ‘filmes de Warhol’ ao falar dos meus filmes! […] Tudo o que eu fiz é atribuído a Warhol, ou como se ele tivesse feito comigo. Esqueça. Ele era incompetente, anoréxico, analfabeto, autista — ele nunca fez nada em sua vida”. Morrissey expressava frustração pela associação constante com Warhol, a quem via como uma figura sem grande envolvimento em suas criações.
O Cão de Hollywood
Após o fim da parceria com Warhol em 1975, o diretor mudou-se para Los Angeles para se aproximar de Hollywood. Ele fechou com a United Artists para filmar “O Cão dos Baskervilles” (1978), uma paródia de Sherlock Holmes que contou com comediantes populares da época, como Peter Cook e Dudley Moore. Apesar das expectativas, o filme foi um fracasso de bilheteria e de crítica. A recepção negativa refletiu, em parte, uma percepção de que a adaptação tinha um humor peculiar e experimental que não ressoou com o grande público e que se distanciou excessivamente do material original, descontentando fãs de Sherlock Holmes.
Morrissey encontrou dificuldades em adaptar sua visão para uma produção comercial, e o insucesso de “O Cão dos Baskervilles” impactou sua relação com grandes estúdios, levando-o de volta a projetos independentes nos anos seguintes.
Trilogia de Nova York
O diretor voltou a Nova York e aos temas do underground na chamada “Trilogia de Nova York”: “Forty Deuce” (1982), “Mixed Blood” (1984) e “O Filho da Máfia” (1988), que recuperaram seu tom ácido característico. Os três filmes exploraram o contexto urbano de Nova York e suas subculturas, mergulhando em temas de marginalização e desigualdade com uma perspectiva crítica sobre a sociedade americana.
Em “Forty Deuce”, Morrissey adaptou a peça homônima de Alan Bowne, focando na vida de jovens prostitutos em Times Square e abordando temas de abuso e exploração em um ambiente urbano degradado. Com “Mixed Blood”, aprofundou as tensões entre diferentes comunidades de imigrantes em Nova York, destacando uma gangue brasileira do Lower East Side liderada por Rita La Punta (interpretada por Marília Pêra), que usa adolescentes para se envolver no tráfico de drogas. Já em “O Filho da Máfia” (Spike of Bensonhurst), o diretor satirizou o sonho americano de ascensão social a partir de um jovem aspirante a boxeador do Brooklyn, que idealiza se tornar campeão e conquistar um lugar de destaque na comunidade ítalo-americana, num exemplo das ilusões de grandeza e o comportamento ambicioso típicos da cultura americana.
Alternativo até o fim
Nenhum dos filmes dos anos 1980 alcançou grande sucesso comercial e o desempenho modesto limitou o apoio financeiro para novos projetos, uma vez que o mercado de cinema independente se tornou cada vez mais competitivo a partir dos anos 1990.
O cineasta foi fazer projetos na Europa e só voltou reaparecer nos Estados Unidos com seu último longa-metragem, “News From Nowhere” (2010), uma sátira à cultura e sociedade americanas, que encerrou sua filmografia com o cinismo característico de sempre. Morrissey permaneceu fiel à sua visão e estilo até o fim de sua carreira.