A campeã olímpica argelina de boxe, Imane Khelif, protocolou uma denúncia por assédio virtual na Justiça francesa, após ser alvo de ataques motivados por declarações de que seria homem. O anúncio foi feito por seu advogado, Nabil Boudi, em comunicado.
A ação foi apresentada na sexta-feira (9/8) na área de combate ao ódio na internet da promotoria de Paris. “A boxeadora Imane Khelif, que acaba de ganhar a medalha de ouro nos Jogos Olímpicos de Paris 2024, decidiu travar um novo combate: o da justiça, dignidade e honra”, escreveu Boudi.
Mancha nos Jogos Olímpicos
Para o advogado, “o assédio sofrido pela campeã de boxe ficará como a maior mancha destes Jogos Olímpicos”. Ele afirmou ainda que a investigação penal deverá identificar quem esteve por trás desta campanha misógina, racista e sexista, além de focar naqueles que alimentaram o linchamento digital.
Ouro no pescoço
Khelif conquistou o ouro olímpico na própria sexta-feira, vencendo a final da categoria peso meio-médio (até 66 kg), mas sua maior luta foi fora dos ringues.
Entenda a polêmica
A participação da argelina nos Jogos Olímpicos de Paris foi envolvida em polêmica desde o início, devido à decisão da Associação Internacional de Boxe (IBA) de impedi-la de lutar a final do Mundial amador de 2023. A entidade alegou que a atleta não cumpria os requisitos de elegibilidade para competir entre mulheres. A IBA não deu explicações, não disse qual teste foi realizado e mantém o caso sob sigilo. Por ironia, com Khelif proibida de lutar a final, a vencedora do campeonato foi justamente a chinesa Yang Liu, que ela derrotou na final olímpica.
O detalhe é que, na mesma época do anúncio polêmico, a IBA foi expulsa das Olimpíadas pelo COI (Comitê Olímpico Internacional), devido a denúncias de corrupção, manipulação de resultados e falta de ética em geral. O COI, que organizou o torneio de boxe olímpico após descertificar a IBA, permitiu que Khelif competisse, seguindo os protocolos de Tóquio 2020 – onde a argelina lutou sem levantar polêmica ou conseguir medalhas. Khelif, de fato, lutou em várias competições da IBA antes de ser barrada.
Na estreia de Khelif em Paris, a italiana Angela Carini abandonou a luta em 46 segundos, alegando dor intensa no nariz após sofrer dois golpes no rosto. A desistência motivou uma onda de discurso de ódio e boatos de que Khelif, nascida e criada mulher cisgênero, seria transgênero. Várias personalidades conservadoras, como a escritora J.K. Rowling, criadora de “Harry Potter”, o bilionário Elon Musk, o ex-presidente Donald Trump, o ex-juiz Sergio Moro e os suspeitos habituais da extrema direita, escreveram na internet que Khelif era um homem que batia impunemente em mulheres e espalharam sua indignação para seus seguidores, que repercutiram a infâmia milhares, senão milhões de vezes.
A rival seguinte de Khelif, a húngara Anna Luca Hamori, também republicou uma postagem nas redes sociais que rotulava Khelif como um homem, além de uma imagem de uma pequena boxeadora enfrentando uma “fera musculosa” com luvas de boxe. A argelina chorou no ringue após vencer a húngara.
Ser LGBTQ+ é crime na Argélia
Imane Khelif é uma mulher que nunca passou por transição de gênero e representa um país, a Argélia, onde ser homossexual dá cadeia. Influenciada pela religião muçulmana, a sociedade argelina reprime as pessoas LGBTQ+ com penas que variam de meses a anos de prisão. Elas sofrem discriminação e estigmatização tanto do governo quanto da sociedade. Essa situação força muitos a viverem de forma clandestina e impede que se exibam com segurança no país. A Argélia jamais admitiria uma atleta transexual, nem mesmo uma atleta lésbica, como representante do país nos Jogos Olímpicos.
Preocupado com a repercussão da difamação, o pai de Imane Khelif defendeu a filha: “Minha filha é uma mulher, temos todas as provas, inclusive a certidão de nascimento. Minha filha era mais forte que a boxeadora italiana. Ela apenas trabalha muito duro”, ele explicou à imprensa local.
Apoio dos fãs
Autoridades e o povo argelino saíram em defesa da lutadora, demonstrando apoio nas esferas políticas, nas arquibancadas e nas ruas de Paris, e comemoraram muito seu título. Após a luta que lhe rendeu o ouro, Khelif também foi saudada pela rival chinesa, que a abraçou sorridente como os demais torcedores diante de sua conquista.
Um perfil de esportes da Argélia a elogiou nas redes sociais enaltecendo as “mulheres argelinas”, que deixam o país “orgulhoso”. Mas um fã resumiu de forma mais precisa o sentimento do público: “Imane Khelif vendeu sucata para pagar seu treinamento de boxe, é embaixadora da UNICEF, lutou contra um bullying horrível e agora é campeã olímpica”.
Declaração de Khelif
“Sou uma mulher forte com poderes especiais. Do ringue, enviei uma mensagem àqueles que estavam contra mim”, declarou Imane Khelif aos meios de comunicação na sexta-feira, após conquistar o ouro. “Sou totalmente elegível para participar, sou uma mulher como as outras. Nasci mulher, vivi como mulher e competi como mulher”, insistiu a boxeadora.