A programação de estreias desta quinta (1/2) tem filmes premiados e com avaliações altamente positivas da crítica. Só que, entre os três lançamentos mais amplos, apenas “Pobres Criaturas” se encaixa nessa descrição. Favorito a colecionar estatuetas do Oscar (são 11 indicações), a fantasia com performance consagradora de Emma Stone divide espaço com a comédia de ação “Argylle – O Superespião”, destruída pela imprensa dos Estados Unidos, e a produção infantil nacional “Gato Galático e o Feitiço do Tempo”, mais um projeto de influencer digital em busca do público de cinema. Sem chances de gerar bilheterias blockbusters, os três chegam em circuito médio, com cerca de 200 telas cada.
O circuito limitado ainda recebe dois lançamentos sul-americanos impactantes e avassaladores em seu terror – sobrenatural e baseado em fatos históricos. Confira a lista completa.
POBRES CRIATURAS
A fantasia gótica que volta a juntar Emma Stone e o diretor Yorgos Lanthimos após “A Favorita” (2018) é um “Frankenstein” feminista e sexual. Adaptação do romance de 1992 de Alasdair Gray, roteirizada por Tony McNamara (também de “A Favorita”), a trama desenrola-se num passado alternativo, rico em elementos góticos e steampunk da era vitoriana – com visual reminiscente de “Metrópolis” (1927) – e acompanha Bella Baxter, uma criatura renascida através dos experimentos de um cientista (Willem Dafoe, de “Aquaman”) com o corpo de uma mulher adulta recém-falecida, mas o cérebro de um bebê.
À medida que Bella se adapta à sua nova existência, ela começa a aprender e a se desenvolver rapidamente, adquirindo linguagem e conhecimento sobre o mundo que a rodeia. É quando um advogado aventureiro, vivido por Mark Ruffalo (o Hulk de “Os Vingadores”), fica fascinado por sua existência e decide introduzi-la ao mundo exterior, guiando-a por diversas cidades europeias, onde ela vivencia uma série de experiências que moldam sua compreensão sobre a vida, a sexualidade e as interações humanas. Ao longo de sua jornada, Bella transforma-se em uma mulher autêntica, com desejos e ambições, ao mesmo tempo em que desafia as convenções sociais de sua época.
A história não é nova, já tendo sido levada ao cinema em “A Prometida” (1985), uma revisão feminista de “A Noiva de Frankenstein” (1935). Mas a abordagem revigora o material com um visual impressionante – dos efeitos à paleta de cores – e uma performance audaciosa de Emma Stone, principalmente em seus aspectos físicos. A atriz usa seu corpo e expressões faciais para comunicar a evolução de Bella, e explorar seu despertar sexual com uma franqueza e uma intensidade raras. Pelo desempenho desinibido, ela já foi premiada como Melhor Atriz no Festival de Veneza, Globo de Ouro e Critics Choice.
Com uma proposta que entrelaça a absurdidade com questões existenciais, “Pobres Criaturas” está indicado a 11 Oscars, incluindo Melhor Filme, Direção, Roteiro e Atriz.
ARGYLLE – O SUPERESPIÃO
A comédia de ação mantém a assinatura estilística do diretor Matthew Vaughn, que se especializou em pastiches de James Bond na franquia “Kingsman”. A trama segue Elly Conway, uma romancista interpretada por Bryce Dallas Howard (“Jurassic World”), conhecida por livros de espionagem, especificamente sua criação Agente Argylle, um espião bonitão imaginado como Henry Cavill (“O Homem de Aço”) com um penteado dos anos 1990. Os problemas começam quando a obra transcende a ficção e começa a se manifestar no mundo real. A premissa intrigante – mas que lembra outros filmes – gira em torno de como os enredos fictícios de Elly se alinham perigosamente com eventos do mundo real da espionagem, levando-a a uma aventura inesperada ao lado de Aidan, um espião de verdade vivido por Sam Rockwell (“Três Anúncios para um Crime”), que é bem diferente de sua visão romanceada da profissão.
O filme se desdobra com Elly sendo arrastada para um turbilhão de eventos que imitam suas próprias criações literárias, onde a fronteira entre ficção e realidade se torna cada vez mais tênue. Apesar de um elenco estelar, que ainda inclui Bryan Cranston (“Breaking Bad”) e Samuel L. Jackson (“Capitã Marvel”), “Argylle” é sobrecarregado por reviravoltas confusas e um estilo visual que, ao tentar impressionar, sucumbe ao exagero dos efeitos especiais. Cheio de clichês com a desculpa da “metalinguagem”, o filme não funciona como comédia e não se leva a série como thriller de ação. Resultado: apenas 37% de aprovação no Rotten Tomatoes.
GATO GALÁCTICO E O FEITIÇO DO TEMPO
Seguindo os passos de Luccas Neto, o youtuber Ronaldo Souza também tenta fazer sua transição do digital para a película. Seu segundo filme como Gato Galáctico gira em torno de um relógio especial que o leva a Cronópolis, uma cidade sob a maldição do vilão Perpétuo, interpretado por Daniel Infantini. Na busca para desfazer o feitiço e salvar crianças desaparecidas, ele encontra aliados e descobre mais sobre seu passado. O filme explora temas como amizade, coragem e a importância das relações familiares, elementos comuns em produções voltadas para o público infantil.
Dirigido por Rodrigo Zanforlin e com roteiro de André Brandt e Gui Cintra, o filme tenta transpor a popularidade de Gato Galáctico do ambiente digital para o cinema, um desafio que envolve capturar a essência do criador de conteúdo de uma maneira que ressoe tanto com seu público fiel quanto com novos espectadores. Apesar da proposta aventureira e do esforço em criar uma história com elementos fantásticos, como o relógio mágico e o cenário de Cronópolis, “Gato Galáctico e o Feitiço do Tempo” enfrenta desafios para convencer nos cinemas, especialmente no que tange à profundidade dos personagens e à coesão do enredo. A produção acaba sendo um compilado dos principais defeitos do cinema infantil brasileiro, com interpretação teatral (tudo é exagerado), diálogos recitados (falas não naturais) e muitos furos narrativos (não precisa aprofundar, porque é para crianças).
O MAL QUE NOS HABITA
O terror argentino mergulha o espectador em uma atmosfera rural carregada de tensão e medos ancestrais. Dirigido e roteirizado por Demián Rugna, que ganhou boa reputação no gênero com “Aterrorizados” (2017), o filme se passa em uma região isolada da Argentina, onde dois irmãos se deparam com sinais de uma presença maligna após escutarem disparos na calada da noite. Sem demora, eles encontram uma cena macabra que sinaliza o início de uma série de eventos sobrenaturais ligados a uma possessão demoníaca que assola a comunidade local.
A história evolui a partir da descoberta de um jovem moribundo, conhecido como “podre”, vítima de uma entidade demoníaca que busca se manifestar fisicamente. Na tentativa de conter essa ameaça, os irmãos se veem enredados em uma trama de desespero e violência, onde cada decisão os leva a enfrentar consequências cada vez mais terríveis. O filme explora temas de exorcismo e influências malignas de forma inovadora, evitando clichês do gênero e construindo um enredo onde as crenças populares e os rituais de proteção se misturam com a urgência de combater um mal que se espalha como praga.
Rugna cria uma atmosfera opressora, onde o medo e a paranoia se manifestam tanto nas paisagens desoladas quanto nos atos extremos de violência. “Quando o Mal Espreita” se destaca não apenas pela sua abordagem original da possessão demoníaca, mas também pelo modo como insere o espectador em um cenário onde o horror é palpável e a luta pela sobrevivência se entrelaça com a perda da inocência e da humanidade. Com sua narrativa ágil e momentos de tensão ininterrupta, trata-se de uma experiência marcante para os aficionados pelo gênero.
OS COLONOS
O “western” ambientado na Terra do Fogo, no extremo sul da América do Sul, é uma paulada, que retrata a brutalidade do colonialismo no início do século 20. A trama segue a missão sangrenta ordenada por um poderoso proprietário de terras, que busca estabelecer uma rota para seus rebanhos através do território, sem consideração pelas vidas indígenas. Ele recruta um ex-soldado escocês, um mercenário americano e um jovem mestiço de habilidades notáveis com armas para “limpar a ilha”, um eufemismo para a eliminação violenta dos povos nativos.
A jornada dos personagens através das vastas e belas paisagens da região é marcada por conflitos e atrocidades, refletindo a crueldade e a ganância inerentes à expansão colonial. A natureza deslumbrante da região, com suas planícies gramadas, montanhas e florestas, contrasta agudamente com a violência dos homens, destacando a pequenez de suas ambições diante da magnitude da terra.
O filme, que marca a estreia do diretor chileno Felipe Gálvez, desloca a narrativa para uma discussão política, quando um oficial do governo confronta o latifundiário sobre sua reputação e o tratamento dos indígenas, buscando uma narrativa unificadora para a nação, apesar do genocídio. Premiado pela crítica no Festival de Cannes, “Os Colonos” resulta numa poderosa condenação da identidade nacional construída à custa de atrocidades, desafiando a glorificação da conquista e a complexidade da história colonial da América do Sul.