O escritor e roteirista italiano Roberto Saviano (“Gomorra”) foi processado por difamação pela primeira-ministra de extrema-direita da Itália, Giorgia Meloni. O julgamento de Saviano começa nesta terça (15/11) em Roma.
Meloni está processando Saviano por comentários que ele fez no programa de atualidades “Piazza Pulita”, em dezembro de 2020, durante uma discussão sobre a questão dos imigrantes. Falando sobre os africanos que chegavam às costas italianas em pequenos barcos ou como resgatados de naufrágios no mar, Saviano se referiu a Meloni como uma “bastarda” por sua postura linha-dura e anti-imigrante.
Na época dos comentários de Saviano em 2020, a imagem de uma criança de seis meses, que morreu afogada depois que o bote onde ela viajava virou, tinha causado comoção na Itália. A criança estava entre seis pessoas que morreram naquela noite. No mesmo ano, o número total de pessoas que morreram tentando cruzar o Mediterrâneo superou as 1800 vítimas.
No período que antecedeu a tragédia, Meloni e o líder do partido nacionalista Lega, Matteo Salvini criticaram os navios que patrulhavam o Mediterrâneo para resgatar pessoas em perigo de vida no mar, referindo-se a estes navios como ‘táxis migrantes’ e dizendo que deveriam ser sequestrados e afundados. Ou seja, que as pessoas deveriam morrer afogadas sem a ajuda de salvadores benevolentes.
Falando sobre a criança morta e sua mãe, Saviano desabafou: “Você se lembra de toda aquela bobagem que foi dita sobre as ONGs, sobre elas serem ‘táxis marítimos’, ‘cruzeiros’. Tudo o que vem à mente são bastardos. Para Meloni, para Salvini, bastardos, como vocês puderam? Como foi possível descrever toda essa dor assim?”
Saviano não voltou atrás nos seus comentários e continuou a fazer duras críticas a Meloni e a seu novo governo, condenando recentemente suas políticas de imigração, e a promulgação de uma lei que coloca em vigor sentenças de prisão de até seis anos para organizadores de raves ilegais.
O juiz encarregado do processo decidiu que o “epíteto bastardo” havia ido “além dos direitos da crítica política”, e por isso colocou o caso em julgamento.
O julgamento é visto como um teste para a liberdade de expressão italiana e o uso crescente de acusações de difamação por parte do governo como uma forma de censurar a imprensa.
Em uma entrevista recente à Radio Capital, de Roma, Saviano revelou que Salvino e o novo ministro da Cultura, Gennaro Sangiuliano, também apresentaram queixas de difamação contra ele. Ele sugeriu que eles estavam mirando nele para alertar outros jornalistas que queriam criticar membros de seu governo e seus partidos de coalizão.
“Eram todas queixas por difamação, relacionadas a mim expressando minhas críticas muito duras a eles. Eles estão me batendo para passar a mensagem aos meus colegas e, acima de tudo, para manipular, para fazer parecer que uma crítica dura e feroz a um político pode ser tomada no mesmo contexto de um comentário que você faz a um cidadão comum”, disse ele.
“Há outro mecanismo oculto em jogo aqui, que é: ‘se você me critica, está indo contra a própria democracia porque é o voto que me permite fazer o que faço. Então, seu comportamento é ilegítimo’. Isso é muito perigoso porque a democracia não se baseia exclusivamente no voto, que é um segmento fundamental e fundador da democracia, mas se baseia sobretudo no respeito à crítica”, continuou ele.
A associação de escritores Pen International publicou uma carta aberta online e no jornal italiano La Stampa pedindo que Meloni retire as acusações.
“Como primeira-ministra da Itália, prosseguir com seu caso contra ele enviaria uma mensagem assustadora a todos os jornalistas e escritores do país, que podem não se atrever a falar por medo de represálias”, escreveu o presidente da Pen International, Burhan Sonmez.
“Saviano não está sozinho. Estamos com ele e continuaremos a fazer campanha até que todas as acusações criminais de difamação contra ele sejam retiradas e seu direito de expressar pacificamente suas opiniões seja protegido de uma vez por todas”, completou ele.
Saviano é conhecido internacionalmente por seu trabalho investigativo exposto no livro “Gomorra” (2006), que narrou a história da organização criminosa italiana Camorra. O livro causou a ira dos chefes do crime e gerou inúmeras ameaças de morte contra o autor, que precisou de proteção policial.
A obra foi adaptada para o cinema em 2008, com roteiro escrito pelo próprio Saviano e direção do cineasta Matteo Garrone. O filme venceu o Grande Prêmio do Júri no Festival de Cannes.
O livro ainda deu origem à série “Gomorra”, criada por Saviano e que durou seis temporadas.