Jean-Luc Godard, ícone da nouvelle vague, morre aos 91 anos

O cineasta Jean-Luc Godard, maior nome da nouvelle vague e lenda do cinema francês, morreu nessa terça (13/9) aos 91 anos por suicídio assistido. Dono de uma carreira longeva e repleta de […]

Divulgação/Pathé

O cineasta Jean-Luc Godard, maior nome da nouvelle vague e lenda do cinema francês, morreu nessa terça (13/9) aos 91 anos por suicídio assistido.

Dono de uma carreira longeva e repleta de experimentações, Godard dirigiu mais de 130 obras, incluindo longas-metragens, curtas, séries de TV e documentários. Seus títulos mais conhecidos são também aqueles que ajudaram a revolucionar o cinema francês, como “Acossado” (1960), “Viver a Vida” (1962) e “O Demônio das Onze Horas” (1965).

Nascido em Paris em 1930, Godard era filho de pais protestantes que viviam entre a França e a Suíça. Após terminar o ensino médio, ele se matriculou na universidade Sorbonne, em Paris, mas logo abandonou as aulas para frequentar os cinemas e cineclubes – onde encontrou outros colegas cinéfilos, como François Truffaut e Jacques Rivette.

Os três, junto com Claude Chabrol e Maurice Scherer (mais conhecido como Eric Rohmer) começaram a escrever críticas e, em 1952, Godard publicou os seus primeiros artigos na revista Cahiers du Cinéma, fundada no ano anterior.

Godard acabou expulso da revista depois de roubar o dinheiro do caixa e fugir para a Suíça, onde com a verba dirigiu o curta-documentário “Operação Beton” (1955). O roubo, de todo modo, não foi um caso isolado. Godard era conhecido por ser cleptomaníaco.

Ele voltou para Paris em 1956, depois de trabalhar na TV suíça e passar um tempo em um hospital psiquiátrico. Ele começou a trabalhar como publicitário, escrevendo materiais promocionais para o estúdio 20th Century Fox, e conseguiu até voltar a escrever para a Cahiers du Cinéma.

Neste período, dirigiu três curtas: “Charlotte e Seu Namorado” (1958), “Todos os rapazes se chamam Patrick” (1959) e “Uma História d’Água” (1961), co-dirigido com Truffaut.

Com esta experiência, ele decidiu dirigir seu primeiro longa-metragem, que se tornou responsável por catapultar a sua carreira e por chamar atenção para um novo estilo de filmar, que foi batizado como “nouvelle vague” – ou, a nova onda do cinema francês.

“Acossado” (1960) contava a história de um ladrão de carros (Jean-Paul Belmondo, que havia trabalhado com Godard no curta “Charlotte e Seu Namorado”) que usa seu charme para seduzir Jean Seberg embora fosse procurado por ter matado um policial. O filme é uma homenagem ao cinema clássico hollywoodiano, ao mesmo tempo que traz personagens sexualmente liberados e propõe a desconstrução da narrativa convencional, colocando câmeras onde escolas de cinema diziam para nunca colocar e fazendo uma edição de cenas que os mestres considerariam errada. Só que essa era a ideia da nova onda.

Godard também empregou um estilo de montagem muito mais ágil, fazendo diferentes experimentos com imagens e sons dessincronizados, e chamando a atenção para a artificialidade do cinema – o oposto do que o naturalismo da montagem clássica pretendia.

A novidade jogou os manuais de cinema no lixo. Mas foi um sucesso. “Acossado” venceu o Urso de Prata no Festival de Berlim e deu origem aos filmes totalmente autorais.

Depois disso, Godard começou a fazer um filme atrás do outro, sempre empregando doses de experimentalismo visual. Seus melhores trabalhos na década de 1960 foram: “Uma Mulher É Uma Mulher” (1961), “Viver a Vida” (1962), “Alphaville” (1965) e “O Demônio das Onze Horas” (1965), clássicos existencialistas. Mas paralelamente também desenvolveu uma fase maoísta, mais evidente em “A Chinesa” (1967), que se acirrou após os protestos estudantis de maio de 1968 e o viu perder adeptos. Ironicamente, também foi a fase em que filmou o documentário “Sympathy for the Devil” (One + One, 1968) com os Rolling Stones.

Muitos destes primeiros filmes foram estrelados pela atriz e modelo dinamarquesa Anna Karina, que se casou com o diretor em 1961. Os dois tiveram um relacionamento tumultuado, que acabou em 1965. Godard chegou a adaptar esse relacionamento para o cinema no filme “O Desprezo” (1963), em que escalou ninguém menos que Brigitte Bardot como a versão ficcional de Karina.

Em 1967, Godard se casou com a atriz Anne Wiazemsky, que também começou a atuar nos seus filmes. Este casamento durou até 1979.

Na década de 1970, ele se juntou a um grupo de ativistas e cineastas de esquerda para formar o “Grupo Dziga Vertov”, nomeado em homenagem ao famoso cineasta russo. O grupo comandou diversos filmes, como “Tudo Vai Bem” (1972) e “Letter to Jane: An Investigation About a Still” (1972), ambos estrelado por Jane Fonda.

Em 1977, Godard voltou para a Suíça e passou a morar com a cineasta Anne-Marie Miéville. Foi o relacionamento mais duradouro da vida do diretor, que persistiu até o final da sua vida.

Abrindo uma nova fase, ele dirigiu em 1980 “Salve-se Quem Puder (A Vida)”, uma obra que se propôs a examinar os relacionamentos sexuais acompanhando três protagonistas que interagem entre si. O filme foi exibido no Festival de Cannes e saudado como o grande retorno do cineasta. Foi também um enorme sucesso de bilheteria no país.

“Salve-se Quem Puder (A Vida)” deu um novo fôlego para a carreira de Godard, que passou a realizar vários filmes consagrados, como “Paixão” (1982), “Detetive” (1985) e principalmente “Eu Vos Saúdo Maria” (1985), que teve grande repercussão pelo tema: uma estudante universitária, que fica grávida sem ter relações sexuais. Considerado uma blasfêmia, foi proibido em vários países, inclusive no Brasil.

A polêmica voltou a sacudir a carreira do infant terrible, que a partir daí radicalizou de vez. Seu filme “Rei Lear” (1987), estrelado por nomes como Woody Allen, Leos Carax, Julie Delpy e Burgess Meredith, dividiu a crítica. O Washington Post afirmou que se tratava de um “total desrespeito de Godard a uma apresentação sustentada e coerente das suas ideias”, enquanto o Los Angeles Times afirmou que se tratava de “obra de um gênio certificado.”

Na década de 1990, Godard comandou filmes como “Nouvelle Vague” (1990), estrelado por Alain Delon, “Infelizmente Para Mim” (1993), com Gerard Depardieu, e “Para Sempre Mozart” (1996).

Porém, o grande destaque desse período foi a série documental “Histoire(s) du cinéma”, iniciada em 1989 e finalizada em 1999. Com um total de 266 minutos e exibida pela emissora francesa Canal Plus, a série consistiu de entrevistas, cenas de filmes clássicos e imagens de arquivo para narrar um século da História do Cinema.

Numa entrevista ao jornal francês Libération, publicada anos após o lançamento, Godard descreveu o projeto como “um pouco como meu álbum de fotos de família – mas também o de muitos outros, de todas as gerações que acreditaram no amanhecer. Só o cinema poderia reunir o ‘eu’ e o ‘nós’”.

Com a chegada do novo século, Godard voltou a inovar em obras como “Filme Socialismo” (2010), “3x3D” (2013) e “Adeus à Linguagem” (2014), filmes que, como o último título sugere, rompiam de vez com a linguagem tradicional cinematográfica – algo que Godard já vinha fazendo, pouco a pouco, desde o início da sua carreira. Radicais, mantiveram a divisão crítica entre os que consideraram as obras geniais e os que não viram mais cinema nas realizações do cineasta, apenas instalações de arte.

Seus últimos créditos como diretor foram o documentário “Imagem e Palavra”, basicamente uma colagem de imagens de arquivo e gravações aleatórias, e o curta “Spot of the 22nd Ji.hlava IDFF”, ambos de 2018.

Nos seus últimos anos, Godard se tornou completamente recluso. Ele se recusava a dar entrevistas, não aceitava prêmios e não viajava para os festivais. Quando lhe foi oferecida a Ordem Nacional do Mérito da França, ele recusou, dizendo: “Não gosto de receber ordens e não tenho méritos”.

E quando foi premiado com um Oscar honorário em 2010, ele se recusou a viajar para Los Angeles para aceitá-lo pessoalmente. Anne-Marie Miéville disse na época que Godard “não irá para a América, ele está ficando velho demais para esse tipo de coisa. Você faria todo esse caminho apenas por um pedaço de metal?”

Ao longo da carreira, Godard colecionou mais de 50 “pedaços de metal”, incluindo prêmios nos principais festivais de cinema do mundo, como o Urso de Ouro no Festival de Berlim (que ele venceu por “Eu Vos Saúdo Maria”), no Festival de Cannes (por “Imagem e Palavra” e “Adeus à Linguagem”), entre muitos outros.

Ao saber da morte do cineasta, o ex-ministro da Cultura da França, Jack Lang, disse à rádio France Info que Godard era “único, absolutamente único… Ele não era apenas cinema, era filosofia, poesia”. O presidente francês Emmanuel Macron também prestou a sua homenagem, chamando-o de “iconoclasta”. “Inventou uma arte decididamente moderna, intensamente livre. Nós perdemos um tesouro nacional, um olhar de gênio”, definiu o governante.