Único filme brasileiro selecionado para o Festival de Veneza, o documentário “Narciso em Férias” foi exibido nesta segunda-feira (7/9) em sessão de gala, fora de competição no evento italiano. Ausentes devido à pandemia de coronavírus, os responsáveis pelo longa participaram da première de forma remota, via videoconferência.
Dirigido por Renato Terra e Ricardo Calil (“Uma Noite em 67”), o filme traz Caetano compartilhando suas memórias do cárcere e as canções que marcaram o período, quando foi preso com seu amigo Gilberto Gil em 1968 e posteriormente exilado do Brasil.
Durante a entrevista coletiva, disponibilizada por streaming, os realizadores destacaram que o filme faz mais que relembrar fatos do passado, que muitos brasileiros não conhecem ou fingem não ter existido. Ele serve também como uma “advertência” para o futuro, diante de rumos dos tempos atuais, “para que não se repitam os erros que culminaram na atrocidade e na imbecilidade que foi a ditadura militar no Brasil”, nas palavras de Renato Terra.
O diretor fez uma comparação entre o passado da ditadura e o governo brasileiro atual. “Em 1968, no Brasil, houve o AI-5, o Congresso Brasileiro foi fechado, havia censura na imprensa, pessoas eram sequestradas, tiradas de casa e torturadas, foi um período horrível da História brasileira. Hoje, a gente vive aqui numa democracia, é diferente, mas o caminho que a gente percorreu para chegar até 68 guarda algumas semelhanças com o que a gente tá vivendo nesse momento no Brasil”, apontou.
Ele lembrou que a volta da ditadura é bandeira de alguns políticos nacionais. “O AI-5, por exemplo, que foi a causa direta da prisão do Caetano e do Gil… Algumas pessoas no Brasil – poucas, mas barulhentas – pedem a volta do AI-5 ou defendem a ditadura militar. E tem um absurdo muito grande nisso, uma coisa que é muito descolada da realidade”.
Ricardo Calil, por sua vez, considerou que “os artistas estavam entre os primeiros alvos da ditadura militar” e, do mesmo modo, também são foco de ataques prioritários do governo atual, mas de forma distinta. “Não há mais a censura, mas há um esforço do governo em desmontar muitas áreas da Cultura, incluindo o cinema, incluindo a Cinemateca Brasileira, que é a instituição que guarda nossa memória cinematográfica, e também as instituições que patrocinam e financiam o cinema e garantem o futuro do cinema nacional”
Paula Lavigne, mulher de Caetano e produtora do documentário, acrescentou que “Narciso em Férias” tem a função de relembrar como foi a ditadura, já que “muita gente não sabe que eles [Caetano e Gil] foram presos”, especialmente os mais novos, por causa da proibição de se noticiar a prisão na época e pela disseminação do negacionismo da extrema direita brasileira. Além disso, ela aponta que o verdadeiro motivo da prisão foi “uma fake news”, um boato, “e isso fica claro nos documentos: não existia uma acusação objetiva”.
Essa arbitrariedade, que veio à tona em documentos recém-revelados sobre a prisão, transformam o encarceramento de Caetano e Gil “num teatro do absurdo, num pesadelo kafkiano”, na definição de Kalil.
Por isso, o filme também serviria para desnudar o despreparo e o caos que caracterizou o regime militar brasileiro. “Uma das táticas da direita é o negacionismo”, ponderou Lavigne, lembrando que há pessoas de direita “dizendo até que não houve ditadura militar”. “Mas muitos artistas foram presos, alguns sofreram até mais que Caetano e Gil, foram torturados, outras pessoas mortas. Então, eu acho que o momento é muito adequado” para se falar disso.
A entrevista foi disponibilizada na íntegra no canal do Festival de Veneza no YouTube. Veja abaixo, a partir de 1h13 minutos do vídeo, que reúne outras coletivas desta segunda no festival.
Já “Narciso em Férias” pode ser visto, também desde esta segunda-feira, com exclusividade na plataforma Globoplay.