“Açúcar”, produção pernambucana dirigida por Renata Pinheiro e Sérgio Oliveira (a diretora e o roteirista de “Amor, Plástico e Barulho”) vale-se do realismo fantástico para abordar o ancestral conflito entre a casa grande e a senzala. Por meio da personagem Maria Bethânia, vivida por Maeve Jinkings (“Boi Neon”) em grande atuação, um antigo e abandonado engenho de açúcar da família Wanderley volta à cena.
Herdeira da família, ela resolve retomar a velha e decadente casa grande, que ainda traz sinais do luxo e opulência do passado. Mas a situação agora é outra: parte das terras pertence aos antigos empregados que lá desenvolveram um centro popular de arte e resistência. E lá estão também as marcas indeléveis da escravidão, as opressões não reparadas, a reivindicação da terra, as contas a pagar, a necessidade de vingança, enfim, a luta de classes. Dos dois lados, como se diz, é preciso conhecer o inimigo. O clima é permanentemente tenso. O presente, o passado e o futuro estão sob ameaça.
O fantástico aparece não só pela presença de criaturas e rituais estranhos, mas também pela entrada e saída de cena de um barco a vela, que “navega” entre as plantações, sem água.
O contemporâneo e o ancestral, o moderno e o arcaico, convivem e se trombam num país predominantemente negro, que tinge os cabelos de louro, como a própria protagonista. Um país que não se reconhece, nega a própria história e identidade, está à beira do rompimento, da explosão.
A impossível volta às origens pretendida por Bethânia e a necessidade de encarar a imensa desigualdade histórica e atual do país colocam uma espécie de dilema insolúvel para cada um e para todos, num momento extremamente difícil, que o filme, feito em 2017, não chegou a captar por inteiro, mas intuiu, de alguma forma.