Henrique Pires, que se demitiu nesta quarta (21/8) do cargo de secretário especial da Cultura do Ministério da Cidadania, criticou a condução da política cultural do país pelo presidente Jair Bolsonaro. Em entrevista ao jornal Folha de S.Paulo, Pires disse que o governo tenta impor censura à expressão artística pela imposição de “filtros” na liberação de verbas e incentivos fiscais.
O motivo do pedido de renúncia é que Pires não concordaria, entre outras medidas, com a suspensão de edital para a TV pública com linha dedicada a produções sobre diversidade de gênero. A decisão foi publicada nesta quarta-feira (21/8) no Diário Oficial em uma portaria assinada pelo ministro da Cidadania, Osmar Terra, após o presidente Jair Bolsonaro atacar a aprovação de séries de temática LGBTQ+ e prometer impedir que fossem produzidas.
Com a repercussão do caso, o Ministério da Cidadania divulgou nota dizendo que o demissionário Pires foi, na verdade, demitido.
Segundo a nota, ele teve o “cargo pedido pelo ministro da Cidadania, Osmar Terra, na noite de terça-feira (20/8), por entender que ele não estava desempenhando as políticas propostas pela pasta”. Para completar, “o ministro se diz surpreso com o fato de que o ex-secretário, até ser comunicado da sua demissão, não manifestou qualquer discordância à frente da secretaria”.
À Folha, Pires confirmou que foi ele quem pediu demissão. “Ficou muito claro que eu estou desafinado com ele [Osmar Terra] e com o presidente sobre liberdade de expressão”, disse o agora ex-secretário. “Eu não admito que a Cultura possa ter filtros, então, como estou desafinado, saio eu”.
“Nós precisamos pacificar o Brasil para trabalhar, e tem gente que não está preocupada, como se não tivéssemos 13 milhões de desempregados e [a gente] precisasse ficar olhando com lupa um filme para ver se tem um homem pelado beijando outro homem”, criticou Pires.
“Eu não estou saindo contra ninguém, estou saindo a favor da liberdade de expressão”, afirmou. “Ou eu me manifesto e caio fora, ou estarei sendo conivente”, concluiu.
A questão que precipitou sua saída, porém, não se limita à aparente censura de obras LGBTQ+. Tem também profundas ramificações econômicas.
Motivo da contrariedade do ex-secretário, a portaria que cancelou temporariamente o edital para a produção de séries com o tema de “diversidade sexual”, na prática paralisou todo o financiamento do setor audiovisual do Brasil.
Oscar Terra deu como justificativa para a suspender o edital e impedir a produção de séries LGBTQ+ já encomendadas a necessidade de recomposição dos membros do Comitê Gestor do Fundo Setorial do Audiovisual (FSA). A portaria também afirma que, uma vez recomposto, o comitê revisará os critérios e diretrizes para a aplicação dos recursos do fundo, assim como os parâmetros de julgamento dos projetos e seus limites de valor.
Isto significa que a aplicação dos recursos do FSA (Fundo Setorial do Audiovisual) está paralisada até a recomposição do comitê. Ou seja, nenhuma verba será destinada à produção de séries e filmes, sejam eles LGBTQ+ ou evangélicos, atualmente em desenvolvimento no país. E que, uma vez recomposto, esse comitê pode resolver mudar a destinação de verbas já comprometidas – caso que tende acabar em judicialização da cultura no Brasil.
De todo modo, a decisão sobre a destinação do dinheiro do FSA depende do aval do comitê gestor. E a formação do comitê depende das indicações de seis integrantes do governo, vindos de diferentes ministérios. Em oito meses de governo, Bolsonaro ainda não indicou nenhum representante.
Por conta disso, o comitê ainda não se reuniu neste ano.
O comitê é formado por 9 pessoas, sendo três da sociedade civil, além de contar com a diretoria da Ancine.
O fundo tem, para este ano, dotação de R$ 724 milhões, vindo da arrecadação do Condecine (Contribuição para o Desenvolvimento da Indústria Cinematográfica Nacional), taxa que continua a ser cobrada para empresas de cinema, TV e telefonia. Esta verba não pode ter destinação diferente da prevista na legislação.
O decreto assinado por Osmar Terra prevê a suspensão do edital por 180 dias, podendo prorrogar o prazo caso o comitê gestor continue sem as indicações dos membros do governo.
Trata-se de uma paralisia provocada propositalmente pelo governo, com aviso prévio de prorrogação indefinida, gerando caos na economia do setor e, em decorrência, de todo o país.