A Espiã Vermelha simplifica questões profundas com romantismo de época

Quando se fala de espionagem, a ideia imediatamente associada a ela é a de traição. Traição a seu país, à sua causa política, aos seus companheiros de trabalho ou militância, a seus […]

Quando se fala de espionagem, a ideia imediatamente associada a ela é a de traição. Traição a seu país, à sua causa política, aos seus companheiros de trabalho ou militância, a seus amores, amigos, familiares. Mas o mundo é complexo e muitos elementos entram nessa equação. Por exemplo, num tempo de guerra, há alianças. Será correto que um país aliado esconda informações essenciais do outro? A lealdade a um país não poderia ser um entrave ao equilíbrio necessário para reconquistar a paz mundial?

No terreno das relações pessoais, como amar e se dedicar a alguém que professa teses arriscadas, que soam parciais ou manipuladas? Enfim, é possível e desejável dormir com o inimigo? É justo excluir amigos e familiares de informações que podem colocá-los em risco? Por outro lado, deixá-los na ignorância pode ser uma forma de protegê-los? E aos companheiros de militância política ou científica é possível omitir ou compartilhar dados sigilosos? Em que medida e com que objetivo?

Todas essas questões perpassam a leitura do romance “A Espiã Vermelha” (Red Joan), de Jennie Rooney, uma criação inspirada em fatos e personagens reais da história, no Reino Unido, no período que antecedeu a 2ª Guerra Mundial, passou por toda a conflagração e continuou após a bomba atômica, em Hiroshima, e a vitória dos aliados ocidentais e da União Soviética.

A personagem da espiã Joan Stanley é complexa e cheia de nuances, sentimentos, valores, lealdades pessoais e políticas. É inspirada livremente na espiã britânica Melita Norwood, que agiu municiando a União Soviética de informações sigilosas. Só foi descoberta 50 anos após, quando já contava com 87 anos de idade, levando uma vida calma e tranquila nos subúrbios londrinos, viúva e com um filho advogado.

O filme homônimo, de Trevor Nunn, adapta essa história surpreendente e atraente, respeitando a proposta do livro, mas reduzindo significativamente o impacto político e a força que esse envolvimento tem na vida da personagem principal e de seus contatos mais importantes.

O comunismo como ideia-força dessa juventude retratada, o papel heroico e ambíguo de Stalin na guerra (haja visto o pacto de não-agressão firmado com Hitler), a opressão que se seguiu, assim como o papel do Reino Unido como aliado preferencial dos norte-americanos, porém, reticente em relação aos soviéticos, o rompimento do que restava do pacto civilizatório com o ataque brutal da bomba em Hiroshima e Nagasaki e o desequilíbrio do mundo com a emergência da superpotência dos Estados Unidos, tiveram um papel de fundamental relevo na trama. Isto é claro no livro, mas tímido no filme.

Os elementos românticos da narrativa são mais explorados pelo filme do que talvez fosse necessário. Parece que houve uma preocupação de tornar mais palatável ao grande público uma trama que deixasse a contextualização política num plano mais geral, sem entrar em muitos detalhes. No entanto, a espionagem em si é apenas um elemento do sentimento político reinante naquele período da história. Não é o centro dela, embora seja o elemento detonador que une o presente ao passado.

Evidentemente, o nome da grande atriz inglesa Judi Dench, que faz Joan idosa nos dias atuais, vai atrair o público aos cinemas. Seu papel, porém, é relativamente pequeno, já que o maior tempo é dedicado ao relembrar do passado que está sub judice da Joan jovem, papel de Sophie Cookson, que está bem, mas não passa a densidade política que a personagem precisaria ter. O elenco como conjunto é muito bom, a produção é bem cuidada, a caracterização de época é ótima, oferecendo um programa cinematográfico de boa qualidade. Mas o livro que inspirou o filme, lançado pela editora Record, aprofunda questões que “A Espiã Vermelha”, no cinema, não conseguiu explorar suficientemente.