No dia em que seu segundo filme consecutivo foi selecionado para o Festival de Cannes, o diretor Kleber Mendonça Filho recebeu um desincentivo para sua carreira da Secretaria Especial da Cultura.
O cineasta vai disputar a Palma de Ouro com “Bacurau”, seu terceiro longa, após participar do festival com o segundo, “Aquarius” (2016). Entretanto, ainda está sendo cobrado pelo governo pelas prestações de contas do primeiro, “O Som ao Redor”, de 2012.
A Secretaria negou o último dos três recursos do cineasta referentes a irregularidades na captação de incentivos do longa lançado há seis anos. A produtora do diretor, Cinemascópio, terá 30 dias após a notificação para devolver R$ 2,2 milhões aos cofres públicos.
Mendonça Filho ainda pode recorrer ao Tribunal de Contas da União (TCU). Caso também perca nesta esfera e não pague o valor solicitado, a produtora vai ficar impossibilitada de participar de editais e programas de incentivos ligados ao Ministério da Cidadania, que absorveu as funções do finado Ministério da Cultura no governo Bolsonaro.
A primeira notificação desse caso foi entregue à Cinemascópio em março de 2018 ainda pelo Ministério da Cultura (MinC). A ação afirma que “O Som ao Redor” excedeu o limite de R$ 1,3 milhão de um edital destinado a produções de baixo orçamento.
“O Som ao Redor” acabou captando, no total, R$ 1,7 milhão, com R$ 410 mil provenientes de um edital do Governo de Pernambuco. O valor que precisa ser devolvido saltou para R$ 2,2 milhões por causa de juros e atualização monetária.
Na ocasião da notificação, Mendonça Filho defendeu-se afirmando que “o projeto não ultrapassou o valor de R$ 1,3 milhão de recursos federais” — R$ 1 milhão vindos do ministério e R$ 300 mil da Petrobras.
Segundo ele, os R$ 410 mil que foram captados além do teto estabelecido no edital do MinC vieram de outro edital, do governo de Pernambuco. O cineasta também afirma que esse acúmulo de fontes foi aprovado pela Ancine.
O edital do MinC, no entanto, não faz distinção entre verbas federais e de outras fontes, determinando que o custo total não poderia ultrapassar R$ 1,3 milhão.
Não há manifestação da Ancine sobre o caso.
Considerado pela crítica um dos melhores longas brasileiros desta década, “O Som ao Redor” venceu o Festival do Rio, a Mostra de São Paulo, o Grande Prêmio do Cinema Brasileiro, levou vários prêmios também em Gramado e no exterior – nos festivais de Roterdã, Toronto, Oslo, Lleida, Lima, CPH Pix, CinePort, Cinemanila, etc.
Ironicamente, ao ter seu novo filme selecionado para o mais prestigioso dos festivais internacionais, Kleber Mendonça Filho teria direito a verba da Ancine de apoio à viagem e divulgação da obra. Mas o TCU paralisou os investimentos da agência.
A política do governo Bolsonaro tem sido de desmonte cultural, com cortes de patrocínios de estatais e projeto de revisão da Lei Rouanet, numa visão de que o Estado tem incentivado o “marxismo cultural”.
O Festival de Cannes acontece de 14 a 25 de maio.