Responsável por revitalizar o mito do zumbi para as gerações modernas, o cineasta George Romero nos ensinou algo simples e importante: zumbis são metáforas. Seja abordando os conflitos sociais (como em “A Noite dos Mortos-Vivos”) ou para o consumismo desenfreado da sociedade (vide “Zombie – O Despertar dos Mortos”) é comum, nos filmes deste subgênero, que o maior perigo enfrentado pelos humanos seja os próprios humanos e não os zumbis – uma vez que estes servem para explicitar os problemas que já enfrentávamos, ou que tentamos disfarçar. O francês “A Noite Devorou o Mundo” explora bem essa temática, mostrando a rotina de um personagem cuja solidão representa a sua salvação e a sua ruína.
Baseada no livro de Pit Agarmen, a trama acompanha Sam (Anders Danielsen Lie), um jovem músico que vai até uma festa da sua ex-namorada para buscar as suas coisas. Embora não torne isso explícito, o roteiro nos dá dicas a respeito dos motivos que levaram à separação do casal. A namorada fala para ele se misturar com as pessoas, conversar, e quem sabe até se envolver com alguém. Ele, por sua vez, prefere se isolar, ignorando os olhares interessados de algumas mulheres da festa. Sam encontra um quarto vazio e se tranca lá para ficar sozinho. Quando acorda no dia seguinte, a cidade – e talvez mundo – foi tomada por zumbis. Em vez de buscar ajuda ou procurar outros sobreviventes, ele se tranca no prédio, organizando-se para sobreviver o máximo de tempo possível com as provisões que recolheu dos outros apartamentos.
O diretor estreante Dominique Rocher explora bem o isolamento do protagonista, apresentado isso, inicialmente, como algo positivo. Assim, são várias as cenas em que o vemos aproveitando a sua solidão para dedicar-se à sua música e criando uma rotina diária que o mantém ocupado. Porém, a sua fortaleza logo se transforma numa prisão, e o racionamento de comida parece apenas adiar o inevitável. O ritmo lento da narrativa é condizente com essa proposta de retratar o tédio da situação em que o personagem se encontra. Ao mesmo tempo, o filme abre espaço para uma discussão sobre do que significa estar vivo. Afinal, estaria Sam garantindo sua sobrevivência ou morrendo mais devagar?
“Estar morto é o novo normal. Eu que não sou normal”, explica Sam, parecendo simpatizar com isso. Porém, essa ideia da individualização do ser humano encontra a sua contrapartida na necessidade de nos relacionarmos com outras pessoas. E Sam explicita essa necessidade ao manter um zumbi preso no elevador, com quem ele trava conversas unilaterais. “Sabe qual é seu problema? Você é um tédio. Não sabe se divertir”, diz ele em certo momento, reproduzindo o que parece ser uma das muitas das discussões que já teve com a namorada. “Um dia eu vou enjoar disso tudo e fugir daqui”, conclui ele, sabendo que isso dificilmente acontecerá.
Sam é o seu maior inimigo. Isolado no alto do prédio, ele chama de volta os zumbis quando estes tinham saído da rua, apenas para manter-se ilhado em meio a um mar de mortos-vivos. Esta situação de proximidade e distanciamento em relação aos outros o conforta. Desta forma, é bastante significativo que, em determinado momento, ele precise enfrentar o seu maior medo, caminhando entre as pessoas, aproximando-se de fato de quem ele manteve uma distância segura o tempo todo.
“A Noite Devorou o Mundo” não trata de finais felizes e não busca a salvação do herói. Mas utiliza muito bem os ensinamentos de Romero, usando os zumbis como metáforas para algo diferente. Neste caso, os esforços e perigos enfrentados pelo protagonista se relacionam com a nossa necessidade de conviver em sociedade. E é aí que reside a principal qualidade deste ótimo filme.