Além de Netflix, o Festival de Cannes também teve cinema neste domingo (21/5). Um filme sobre cinema, para deixar bem claro: o francês “Le Redoutable”, de Michel Hazanavicius (diretor de “O Artista”), sobre o lendário cineasta Jean-Luc Godard.
Abordar um personagem tão complexo como Godard, que continua ativo aos 86 anos, foi considerado um desafio, que Hazanavicius transformou em comédia. “Algumas pessoas provavelmente pensam que contar a história de Godard é blasfêmia”, disse o diretor à imprensa. “Meus amigos estavam preocupados. Mas ele não é meu herói ou meu Deus. Godard é como o líder de uma seita e eu sou um agnóstico”.
Mesmo assim, Hazanavicius não vê problema em crucificar Godard. Seu filme encontra o cineasta em crise, renegando sua filmografia em meio ao contexto das rebeliões de maio de 1968 na França, logo após filmar “A Chinesa” (1967) sobre uma estudante marxista-maoista, vivida por Anne Wiazemsky, sua musa e esposa.
O que atraiu Hazanavicius ao projeto foi o livro de memórias de Wiazemsky, a francesa de origem alemã que cativou os diretores da nouvelle vague. Em 1966, com 18 anos, ela estrelou o filme de Robert Bresson “A Grande Testemunha”, e, durante a filmagem, conheceu Godard, com quem se casou um ano depois.
Segundo o diretor, o livro explica como a ainda adolescente ficou apaixonada pelo cineasta de meia-idade, que se mantinha espirituoso, charmoso e rebelde numa época em que a juventude não confiava em ninguém com mais de 30 anos. “Todo mundo já ouviu falar que ele era um cara difícil. Para mim, isso não poderia ter sido toda a história. Havia claramente algo muito sedutor sobre ele”.
“É por isso que eu queria que Louis Garrel vivesse Godard”, completou, referindo-se à fama de sex symbol do ator francês, que na tela contracena com a jovem Stacy Martin (revelação de “Ninfomaníaca”).
A própria Anne Wiazemsky elogiou a transformação de Garrel, algo que chamou atenção de toda a crítica. “Fiquei hipnotizada com a semelhança alucinante entre Louis Garrel e Jean-Luc. Fala como ele”, declarou a atriz de 69 anos.
O que Godard exprime no filme da Hazanavicius, porém, é pura amargura, resultado da impossibilidade de ser jovem para sempre, da dificuldade de revolucionar a sociedade e o cinema como desejaria, e da insustentabilidade de seu casamento. A personalidade difícil não perdoa nem seus fãs, porque gostam de filmes que ele já considerava antigos e ultrapassados em 1968. O mau humor permanente gera frases impagáveis, mas também conduz à situações de pastelão, em que o protagonista sempre quebra seus óculos no final das piadas.
Hazanavicius retoma os truques de “O Artista”, ao transformar as características da nouvelle vague em clichês, que ajudam a informar as cenas, ao mesmo tempo em que cutuca Godard e a geração de 1968, ao insinuar que era uma loucura o cineasta desdenhar de seus melhores filmes, especialmente porque ele não sabia nada sobre a luta de classes dos proletários que supostamente abraçava com “A Chinesa”.
É realmente uma heresia para os cinéfilos que ainda acreditam que Godard é Deus. E são muitos, como se viu pela quantidade de críticos que considerou seu último filme experimental como um dos melhores do ano passado. “Estou preparado para o pior, mas espero o melhor”, completou o diretor, ciente do que fez.