Os desafios para as heroínas da Disney estão ficando cada vez mais difíceis. Rapunzel escapou de sua torre em “Enrolados” para que pudesse ver um festival de lanterna, Anna tentou impedir a irmã de congelar seu reino em “Frozen”, e agora a personagem-título de “Moana” tem que salvar seu povo e sua ilha da ira de uma Deusa. Detalhe: ela se atira à proeza sem contar com nenhum príncipe de plantão. Não há necessidade. Mais curioso ainda, sem príncipe, o desenho desenrola-se sem um romance.
No lugar do bonitão viril e sorridente, a princesa da polinésia forma dupla com um semideus Maui gordo, desengonçado e meio bobão (dublado originalmente por Dwayne “The Rock” Johnson).
A história é simples e cristalina como a textura que os desenhistas dão ao mar do Pacífico Sul. Moana Mawaliki (voz de Auli’i Cravalho na original e de Any Gabrielly, na versão brasileira) está na fila para suceder seu pai, o chefe da tribo e da ilha Motu Nui, mas a mocinha não quer administrar terras, seus olhos são atraídos pelo oceano e pelas lendas que sopram do além-mar.
Uma dessas lendas diz respeito a uma pérola rara pertencente à deusa da fertilidade Te Fiti. O semideus Maui apoderou-se da joia e o roubo, dizem-nos, mergulhou o mundo na escuridão – é por isso que os oceanos são agora muitas vezes traiçoeiros. Há, acredite ou não, base histórica para este arranjo: cerca de dois mil anos atrás, uma abrupta mudança de temperatura tomou o Pacífico Sul formando uma zona de ciclones tropicais e a navegação tornou-se quase impossível por dezenas de anos. Como conseqüência, as correntes migratórias dos povos da região cessaram por um longo período.
Os roteiristas e diretores Ron Clements e John Musker (responsáveis por “A Pequena Sereia” e “Aladdin”) douram a pílula. Transformam o fenômeno num espetacular embate de semideuses domando tufões e vulcões. A diminuta Moana enfrenta os titãs como se fosse uma formiga. Mas ela tem poderes especiais: os mares dobram-se a sua vontade. Plumas de água se estendem e brincam com os cabelos da princesa. As ondas ocasionalmente a carregam como se fossem um trono líquido. Isso lhe dá a coragem de fugir de sua aldeia para encontrar Maui, resgatar a pérola e entregá-la a Te Fiti.
Quando, no entanto, Moana localiza o semideus, ele é um desapontamento grave, um narcisista muscular que perdeu todos os seus poderes especiais. Sem seu gancho de peixe mágico, que lhe permite se transformar em diferentes animais, Maui é praticamente inútil. Moana raspa a superfície da confiança do semideus e encontra um homem alquebrado – rejeitado pela humanidade, odiado pelos deuses, vivendo em ressentimento.
Que ele desista tão facilmente de qualquer desafio é muitas vezes jogado no filme como uma piada, mas é difícil não se deixar levar por Maui. Sua auto-aversão o humaniza. Além disso, há um atrativo curioso: tatuagens animadas magicamente aparecem em seu peito e em suas costas após eventos importantes, contando a história de sua vida. O personagens é uma criação maravilhosa, e Dwayne Johnson o exprime com uma mistura hábil de fanfarronice e pathos.
“Moana” faz a gente compreender como um personagem aflitivo pode ser tão adorável. E também como Ron Clements e John Musker podem ser afiados, talentosos e certeiros. Ambos têm a habilidade de pegar ideias caóticas e transformá-la em algo impressionante, mesmo quando não parece lógico. Exemplos: um vulcão se contorce e ganha corpo de um monstro e uma deusa serena deita-se na água e transforma-se numa ilha. O surrealismo em cena encadeia-se e forma um sentido, sim. Têm o sentido puro do universo das crianças, o mesmo espírito que nos perpassa quando olhamos um livro ilustrado da nossa infância e suspiramos pelas boas recordações.