A Passageira embarca nas feridas abertas da América Latina

“A Passageira”, que dá título ao filme de Salvador del Solar no Brasil, é o nome do romance de Alonso Cueto (La Pasajera), o que põe em evidência uma mulher que toma […]

“A Passageira”, que dá título ao filme de Salvador del Solar no Brasil, é o nome do romance de Alonso Cueto (La Pasajera), o que põe em evidência uma mulher que toma um táxi e abala os sentimentos do motorista, que a partir daí passará a procurá-la, com a intenção de se redimir de um passado cheio de culpa.

Esse homem é “Magallanes”, título original do filme peruano, que se centra, de fato, na figura desse personagem, que enfrentará seu passado comprometido, umbilicalmente ligado ao de seu país. Ele foi soldado do exército peruano, lutou contra o Sendero Luminoso, na guerra civil que abalou o Peru e produziu a ditadura de Fujimori. Um passado violento e terrível, que todos parecem querer esquecer. Mas é possível?

Magallanes, vivido pelo ótimo ator mexicano Damián Alcazar (série “Narcos”), trabalha hoje transportando e servindo ao “coronel”, papel do grande ator argentino Federico Lupi (“O Labirinto do Fauno”). Coronel, evidentemente, remete aos núcleos de poder militar e também de domínio da terra, representação de uma elite dominante opressora.

A passageira que Magallanes reconhece é Celina, papel da atriz peruana Magaly Solier (“A Teta Assustada”), em excelente atuação. Celina sofreu diretamente sob o jugo do tal coronel, de modo vil, ainda muito jovem. Ela é a primeira a querer esquecer o sofrimento atroz que passou. Ao coronel, a seu filho e seus colaboradores policiais e políticos, não interessa mexer nisso. As atrocidades se esquecem. No caso do coronel, a idade avançada já lhe produziu a doença de Alzheimer, ou equivalente, de modo que ele não se lembra de nada.

É do esquecimento, do não se lembrar, do não querer saber, do propósito declarado de pôr uma pedra em cima de tudo, que se move esse pequeno grande filme. Uma metáfora das feridas deixadas em aberto pelas ditaduras e guerras da América Latina, de 25, 30 anos atrás, que não fecharam, mas que não podem ser ignoradas. Remetem a uma história que compromete cada um e todos, de um modo ou de outro. Algozes, vítimas, omissos, a todos cabe a tarefa de resgatar a memória do passado recente, para poder superá-lo e não repetir a tragédia.

“Magallanes” é um filme que tem uma trama muito bem urdida, no sentido de nos revelar, na história pessoal dos três principais personagens, as dimensões sociopolíticas da realidade peruana e, claro, latino-americana do período. Uma época que esperávamos superada pela democracia recém-conquistada, mas que está sempre em risco. Sobretudo, quando tudo o que se quer é esquecer e não enfrentar os fantasmas e demônios que se produziram por aqui.

Além disso, “A Passageira” trabalha com uma narrativa policial e de suspense que mantem o espectador muito ligado nas cenas e sequências apresentadas. A resolução do filme é fantástica, para mostrar a quem interessa e as motivações que estão por trás desse desejo de apagar a História.

A produção envolve a participação de diversos países de língua espanhola, como Argentina, Colômbia e Espanha. O peruano Salvador del Solar já tem uma larga trajetória como ator de cinema e TV. Sua estreia como diretor é muito convincente.