O Ponto Zero pode ser entendido como o momento fugaz que caracteriza o presente. Ao se tomar consciência dele, ele já passou, já é lembrança. O que se vive, aqui e agora, pode ser uma ilusão, um sonho, um pesadelo, uma distorção da percepção ou, simplesmente, um elemento da memória, que retorna. Ou mesmo a expressão de um desejo ou de uma fantasia.
O filme gaúcho “Ponto Zero”, escrito e dirigido por José Pedro Goulart, explora esteticamente ideias como essas, ao retratar a noite e madrugada, conturbada e tensa, vivida pelo garoto Ênio (Sandro Aliprandini), de 14 anos de idade, entre a sua casa e a sua cama, as ruas desertas de uma Porto Alegre adormecida e ambientes insones em que a prostituição se destaca. Ou, quem sabe, ela está apenas no outro lado da linha telefônica?
Onde está o presente? Onde está a realidade? Na vida diária do adolescente, que não suporta o conflito entre seu pai e sua mãe? No ciúme doentio da mãe? Na infidelidade explícita e desavergonhada do pai? Na rádio que, de madrugada, se relaciona com as angústias de seus ouvintes, onde seu pai trabalha e parece pouco sensível aos sentimentos alheios? Na busca da prostituta sofisticada, que atende ao telefone com mensagens literárias, por exemplo, de Cecília Meireles?
Uma fotografia deslumbrante de ambientação noturna, marcada por incessante chuva, domina a cena. Explora o caráter misterioso da situação. É etérea e pálida, com as luzes da noite enfatizando a beleza dos pingos de chuva que insistem em não parar. Ou invade o ambiente urbano, claustrofóbico, dos prédios aglomerados, passeia na bicicleta que percorre os canteiros das avenidas, mas que se mete em casa ou na sala de aula, de forma inesperada.
Há um clima de angústia e incerteza que domina o filme, enquanto proporciona uma experiência estética por meio da ambientação, dos enquadramentos, da composição das cores e das luzes, nas tonalidades marrom e amarelada que predominam nas cenas.
O jovem protagonista experiencia o que seu pai Virgílio (Eucir de Souza) explicita em um dos poucos diálogos que o filme tem: a vida, a morte e a sorte, as três coisas que existem no mundo, segundo o personagem. Sobreviver a um dilúvio de angústia e solidão é mesmo uma questão de sorte, como se verá.
O elenco que segura a onda desse projeto pretensioso é muito bom. Mas dependia do desempenho do estreante Sandro Aliprandini, que está presente em praticamente todas as cenas. Ele dá conta da responsabilidade, com uma entrega considerável a um papel que exige muito de si.
José Pedro Goulart é estreante em longas-metragens, mas já veterano na publicidade e nos curta-metragens. Ele dividiu com Jorge Furtado a direção de um curta famoso e premiadíssimo, em 1986, “O Dia em que Dorival Encarou o Guarda”.