Kirk Douglas, um dos últimos atores da era de ouro de Hollywood, morreu nesta quarta-feira (5/2) aos 103 anos, nos Estados Unidos.
A informação foi confirmada pelo filho, o também ator Michael Douglas, em comunicado. “É com muita tristeza que meus irmãos e eu anunciamos que Kirk Douglas nos deixou aos 103 anos. Para o mundo, ele era uma lenda, um ator da era de ouro do cinema que viveu seus anos dourados. Um humanitário cujo comprometimento com a justiça e as causas que acreditava estabeleceu um padrão para todos nós aspirarmos”.
O texto de Michael conclui dizendo que “para mim e meus irmãos Joel e Peter, ele era simplesmente pai, para Catherine [Zeta-Jones], um maravilhoso sogro, para seus netos e bisnetos, um avô amoroso e, para sua esposa Anne, um marido maravilhoso. A vida de Kirk foi bem vivida e ele deixa um legado no cinema que perdurará pelas gerações vindouras, e uma história como um filantropo de renome que trabalhou para ajudar o público e trazer paz ao planeta”.
A causa da morte não é conhecida, mas ele sobreviveu a um acidente de helicóptero em 1991 e a um AVC em 1996, que o deixou com problemas de fala.
Filho de imigrantes russos de origem judaica, que chegaram aos EUA fugindo do nazismo, Issur Danielovitch, o menino que virou Kirk Douglas, viveu uma infância pobre, entre seis irmãos. Trabalhava como faxineiro quando conseguiu impressionar o diretor da Academia de Artes Dramáticas de Nova York num teste para entrar na escola, e conseguiu uma bolsa de estudos por não poder bancar as aulas. Ele chegou a estrear no teatro em 1941, mas sua carreira foi interrompida quando foi alistado para lutar na 2ª Guerra Mundial.
Por isso, já tinha 30 anos quando sua colega de curso de atuação, a icônica Lauren Bacall, convenceu o produtor Hal Wallis a lhe dar seu primeiro papel no cinema. Era para ser uma figuração, mas o teste foi tão bom que ele foi escalado num dos principais papéis de “O Tempo Não Apaga” (1946), de Lewis Milestone, como o marido alcoólico e não amado de Barbara Stanwyck, personagem complexo que antecipou o tipo de figuras que interpretaria ao longo de mais de 90 longa-metragens.
Depois de enfrentar Robert Mitchum e Burt Lancaster em dois clássicos noir, “Fuga do Passado” (1947) e “Estranha Fascinação” (1947), sua fisionomia marcante, caracterizada por uma covinha profunda num queixo privilegiado, logo passou a estampar pôsteres como protagonista. Já em “Minha Secretária Favorita” (1948) deixou de interpretar o vilão para se tornar o galã romântico, em seu primeiro papel principal.
Curiosamente, ele não investiu nesse perfil. Ao contrário, preferiu continuar malvado e fazer clássicos.
No espaço de uma década, Douglas trabalhou com alguns dos maiores diretores do cinema americano, estrelando filmes memoráveis como “Quem é o Infiel?” (1949), de Joseph L. Mankiewicz, “Êxito Fugaz” (1950), de Michael Curtiz, “Embrutecidos pela Violência” (1951), de Raoul Walsh, “Chaga de Fogo” (1951), de William Wyler, “A Montanha dos 7 Abutres” (1951), de Billy Wilder, “O Rio da Aventura” (1952), de Howard Hawks, “Assim Estava Escrito” (1952), de Vincente Minnelli, “Mais Forte que a Morte” (1953), de Anatole Litvak, “Caminhos sem Volta” (1955), de Henry Hathaway, “Homem sem Rumo” (1955), de King Vidor, “Sede de Viver” (1956), de Minnelli e George Cukor, “Glória Feita de Sangue” (1957), de Stanley Kubrick e a dupla de westerns “Sem Lei e Sem Alma” (1957) e “Duelo de Titãs” (1959), de John Sturges.
Se tivesse feito apenas estes filmes, sua filmografia seria uma das melhores de todos os tempos, repleta de clássicos e obras de mestres da sétima arte, de onde saíram, inclusive, suas três indicações ao Oscar. Mas este foi apenas o começo de sua carreira.
Douglas deu vida a algumas das principais tendências do cinema hollywoodiano, transitando dos gângsteres de filme noir para os cowboys de chapéu preto, mas ficou conhecido mesmo como o nome dos filmes de qualidade.
Sua primeira indicação ao Oscar veio com o papel do pugilista cínico e cruel de “Invencível” (1950), um vilão que encantou a Academia. A segunda foi como um produtor ambicioso de cinema em “Assim Estava Escrito” (1952). E a terceira acompanhou seu retrato sublime do atormentado pintor Vincent van Gogh, em “Sede de Viver” (1956). Em comum, eram todos os personagens repletos de falhas e muitas vezes detestáveis.
Esta característica também marcou o jornalista sensacionalista de “A Montanha dos 7 Abutres”, que explorava uma tragédia em busca de benefício próprio, assim como inúmeros outros papéis de sua carreira. Mesmo seus heróis se caracterizavam por possuir um lado sombrio, como Ulisses, no filme homônimo de 1954, o arpoador Ned Land em “20.000 Léguas Submarinas” (1954) e o cowboy Doc Holliday, em “Sem Lei e Sem Alma”.
Dizem que essa personalidade difícil não existia apenas nas telas. O ator nutria a reputação de gostar de mandar em seus diretores. Seu amigo de longa data Burt Lancaster costumava dizer que o próprio Kirk Douglas era o primeiro a admitir ser uma pessoa difícil — “Eu sou o segundo a dizer”, acrescentava na piada. Fato é que, desde 1955, passou a receber créditos em seus filmes como produtor.
Esta força de bastidores acabou se provando positiva quando ele resolveu enfrentar a lista negra de Hollywood.
Para saber o que era a lista negra é preciso lembrar que, após a 2ª Guerra Mundial, políticos da extrema direita tinha instaurado um clima de paranoia nos EUA, dizendo que havia comunistas em todos os lugares, inclusive na indústria cinematográfica. Dando início a uma “caça às bruxas” moderna – uma guerra ao “marxismo cultural”, expressão que não existia na época, mas que serve de parâmetro para os leitores atuais – , o Congresso americano pressionou roteiristas, diretores e atores a revelar quais de seus colegas eram esquerdistas. Quem se recusava a falar, era ameaçado de prisão e fim de carreira. Assim que os primeiros cederam, foi criada uma lista com nomes dos “comunistas” de Hollywood, a infame lista negra.
Vários roteiristas foram listados e proibidos de trabalhar. Mas eles encontraram um meio de driblar os políticos, usando a assinatura de colegas e até mesmo pseudônimos. Mesmo assim, havia um clima de pânico por receio do subterfúgio ser descoberto.
Quando definiu que seu primeiro filme dos anos 1960 seria “Spartacus”, Kirk Douglas resolveu contratar o melhor roteirista que conhecia, Dalton Trumbo, um escritor da lista negra. Mas ao fechar o projeto com o diretor Stanley Kubrick, ele insistiu que Trumbo fosse creditado com seu nome real. Dizia que se fossem criar problema com o produtor, ele era o produtor.
Trumbo foi devidamente creditado e nada aconteceu contra ele, Kubrick ou Douglas, encerrando o terror da lista negra em Hollywood. Como intertexto, esse embate aconteceu apropriadamente num filme de temática revolucionária, em que um escravo chamado Spartacus liderava um levante contra os desmandos do Senado de Roma. Consagrado como um dos principais épicos de seu gênero, “Spartacus” venceu quatro Oscars.
O ator dizia que se orgulhava mais disso do que de qualquer filme que tivesse feito. Mas ainda fez muitos outros clássicos nos anos seguintes, entre eles o western “O Último Por-do-Sol” (1961), de Robert Aldrich, “A Lista de Adrian Messenger” (1963), de John Huston, “Sete Dias de Maio” (1964), de John Frankenheimer, “A Primeira Vitória” (1965), de Otto Preminger, “Os Heróis de Telemark” (1965), de Anthony Mann, “Paris Está em Chamas?” (1966), de René Clément, “Movidos pelo Ódio” (1969), de Elia Kazan, e “Ninho de Cobras” (1970), outra parceria com Mankiewicz. Apenas mais uma seleção incrível de obras de mestres do cinema.
A partir dos anos 1970, sua carreira seguiu um rumo inusitado, levando-o a acumular filmes de fantasia e ficção científica. O mais curioso é que até essa etapa trash ou decadente, inferior à fase clássica, produziu bons títulos de entretenimento, como a adaptação de Jules Verne “O Farol do Fim do Mundo” (1971), a sci-fi paranormal “A Fúria” (1978), de Brian De Palma, o terror nuclear “Exterminação 2000” (1977), de Alberto Martino, a cultuada viagem no tempo de “O Nimitz Volta ao Inferno” (1980) e o divertido western cartoon “Cactus Jack, o Vilão” (1979), em que enfrentou Arnold Schwarzenegger.
Além de Brian De Palma (duas vezes), ele trabalhou com outros cineastas que marcaram a era do VHS, entre eles George Miller, o criador de “Mad Max”, em “Herança de um Valente” (1982), e John Landis, o diretor de “Blues Brothers”, “O Clube dos Cafajestes” e do célebre clipe de “Thriller”, de Michael Jackson, em “Oscar: Minha Filha Quer Casar” (1991) – no qual contracenou com Sylvester Stallone.
Um de seus últimos filmes, “Acontece nas Melhores Famílias” (2003), ainda lhe permitiu atuar ao lado de seu filho, o igualmente famoso ator Michael Douglas.
Para dar a devida dimensão à importância e tamanho da carreira de Kirk Douglas, basta lembrar que ele ganhou seu primeiro troféu pelas realizações da vida no Globo de Ouro de 1968. Quase 30 anos depois, em 1996, foi a vez do Oscar homenageá-lo por sua impressionante filmografia. Após mais três anos, foi a vez do SAG (Sindicato dos Atores). E ele ainda estava ativo. Em 2001, foi a vez do Festival de Berlim. Até o WGA (Sindicato dos Roteiristas) lhe deu um prêmio em reconhecimento pelo que fez por Dalton Trumbo.
Na verdade, a indústria cinematográfica nunca parou de homenageá-lo, desde que ele ganhou sua estrela na Calçada da Fama em 1960. E o motivo de tanto carinho é que, em contraste com os papéis de malvados, ele foi um grande herói da vida real. Não apenas por enfrentar o fascismo americano. Mas por criar a Fundação Douglas, que desde 1964 investe em vários projetos de educação e saúde, ajudando a manter casas de repouso para astros idosos, hospitais infantis, playgrounds públicos, pesquisas médicas e bolsas de estudos.
Em 2018, já com 101 anos, de cadeira de rodas e com problemas relacionados a seu AVC, Kirk Douglas pôde testemunhar pela última vez como era querido em Hollywood, ao ser aplaudido de pé por toda a geração atual de atores, atrizes e cineastas. Foi a última vez em que apareceu em público, durante o Globo de Ouro.