Governo Bolsonaro acusa diretora de Democracia em Vertigem de “denegrir” o Brasil

O governo Bolsonaro decidiu atacar a cineasta Petra Costa em seus canais oficiais. A Secretaria de Comunicação da Presidência da República (Secom) acusou a cineasta do documentário “Democracia em Vertigem”, indicado ao […]

O governo Bolsonaro decidiu atacar a cineasta Petra Costa em seus canais oficiais. A Secretaria de Comunicação da Presidência da República (Secom) acusou a cineasta do documentário “Democracia em Vertigem”, indicado ao Oscar 2020, de “denegrir uma nação” diante da mídia dos EUA.

Em um série de posts do Twitter, em inglês e português, a Secom sustenta que a cineasta “assumiu o papel de militante anti-Brasil e está difamando a imagem do País no exterior”, “sem respeito por sua Pátria e seu povo”, por denunciar, em entrevistas, o perfil autoritário do governo, seus ataques a minorias, desmandos na área de meio-ambiente e os reflexos da eleição passada no aumento dramático no número de mortes em ações policiais.

“É incrível que uma cineasta possa criar uma narrativa cheia de mentiras e prognósticos absurdos a fim de denegrir uma nação só porque não aceita o resultado das eleições”, diz um dos tuítes da Secom, que busca desmentir pontualmente as “fake news” da diretora, criando sua própria versão dos fatos. Leia abaixo toda a narrativa oficial – que ignora dados como recordes de desmatamentos, pressão mundial para início de trabalhos de defesa ambiental, acusação leviana do presidente contra ONGs, que envolveram ataques gratuitos até ao ator Leonardo DiCaprio, projetos para garimpagem e atividades agropecuárias em terras indígenas, sem esquecer a situação catastrófica de poluição litorânea, além das tentativas de aprovar leis que isentam de punição militares e policiais, e descriminalizar a letalidade em ação policial (autos de resistência).

O vídeo que acompanha os tuítes é ainda mais parcial, chegando a afirmar que “o governo federal não fez nenhuma ação contra direitos de minorias”. O presidente só disse publicamente que “não fazia sentido” incentivar filmes e séries de temática LGBTQ+, afirmando que ia “mandar pro pau” projetos do gênero, o que levou à derrubada de um edital. Também esteve por trás de censura explícita e demissão de quem autorizou publicidade estatal com LGBTQs+ e da notória proibição de manifestações artísticas sobre diversidade sexual em centros culturais ligados a estatais. “Nenhuma ação”?

A votação do Oscar se encerra nas próximas horas (em 4/2), mas o governo brasileiro, que até então não tinha ajudado a única representante do cinema nacional que disputa a premiação, acabou prestando grande serviço, ao fazer propaganda gratuita de última hora. O ataque acaba materializando um forte motivo para os votantes optarem pelo filme de Petra Costa, em repúdio a mais uma manifestação contra o trabalho de artistas feita oficialmente pela administração de Bolsonaro.

A campanha anti-Petra se dá em função de a cineasta ter ganhado grande visibilidade com a indicação ao Oscar e estar no centro da mídia americana, dando diversas entrevistas em que denuncia o crescente autoritarismo do governo. Claramente sem perceber a ironia, o ataque da Secom apenas confirma o diagnóstico da diretora para o mundo inteiro – ainda escandalizado ao descobrir que o Brasil tinha um secretário de Cultura simpatizante do nazismo.

Ninguém nega, nem a própria Petra, que “Democracia em Vertigem” faz uma retrospectiva de um ponto de vista pessoal – e assumidamente petista – dos eventos recentes da política brasileira, com ênfase no impeachment de Dilma Rousseff. Trata-se de uma peça da guerra de narrativas políticas. Há outra, feita pelo MBL, chamado “Não Vai Ter Golpe”, que conta versão diferente. E democracia é exatamente isso, a convivência entre diferenças de perspectivas. Quem tem bom-senso sabe que a parcialidade faz parte desse jogo.

Entretanto, não vem à lembrança outro caso em que o governo de um país democrático – a Rússia não se enquadra – tenha denunciado um cineasta como anti-patriota por conta de críticas políticas, como a Secom acaba de fazer.

Vale considerar que, se criticar um presidente fosse “denegrir uma nação”, Bolsonaro seria um dos maiores anti-patriotas da história do Brasil. Não só atacou os governos petistas como votou pelo Impeachment de Dilma Rousseff. Mas ele se considera o maior patriota de todos. E tem seu direito constitucional garantido de criticar presidentes passados, porque um nação democrática não se confunde com seus governantes. Quando a crítica ao governo passa a ser considerado antipatriotismo, a declarada saudade da ditadura do presidente sai do terreno das ideologias para se materializar com a força de uma ação oficial.

Nesse sentido, é interessante reparar ainda na escolha de palavras da Secom. “Denegrir” é o termo mais politicamente incorreto que poderia ter sido usado na situação. Sua inclusão ajuda a aprofundar o intertexto, num vislumbre da mente dos responsáveis pelo ataque oficial, que ainda chamam negros brasileiros de afro-americanos. Só que afro-americano é um termo que identifica exclusivamente afro-descendentes nos EUA – e não no Brasil. Ou seja, se a discussão for racismo no governo, a Secom contribuiu apenas para piorar o quadro.

Para completar, ressalte-se que a Secom está atualmente envolvida num escândalo político, graças às denúncias sobre a atuação de seu chefe, Fábio Wajngarten, suspeito de peculato (subtração ou desvio, por abuso de confiança, de dinheiro público), advocacia administrativa (patrocinar, direta ou indiretamente, interesse privado perante a administração pública) e quebra do princípio da impessoalidade na administração (colocar interesses pessoais acima do interesse público), que estão sendo investigadas pelo MPF (Ministério Público Federal) e pelo TCU (Tribunal de Contas da União).