Paraíso Perdido é experiência catártica poucas vezes vista no cinema brasileiro

Os musicais começaram a bombar nos Estados Unidos durante o período da chamada Grande Depressão, na virada dos anos 1920 para 1930, aproveitando o advento do cinema sonoro. Ir ver um musical […]

Os musicais começaram a bombar nos Estados Unidos durante o período da chamada Grande Depressão, na virada dos anos 1920 para 1930, aproveitando o advento do cinema sonoro. Ir ver um musical tinha, portanto, um simbolismo imenso: a necessidade de encontrar em uma espécie de oásis em meio a turbulência do mundo lá fora.

É isso que José, o personagem de Erasmo Carlos, proprietário da boate Paraíso Perdido, oferece aos que adentram o novo filme de Monique Gardenberg: esqueçam todos os seus problemas, esqueçam sua vida lá fora, bem-vindos ao “Paraíso Perdido”. Mais ou menos isso. E, de fato, o que se experimenta ao longo da duração do filme é realmente quase duas horas de trégua da dura vida.

Não só isso. Por ser um musical, “Paraíso Perdido” não tem a preocupação de buscar fidelidade no campo do naturalismo das atuações e nem de fazer sentido em sua complicada trama familiar. As cores da fotografia, o gosto pelo brega e o respeito imenso ao amor (homo ou hetero) facilitam uma identificação com o cinema de Pedro Almodóvar, mas as canções, a maioria delas classificadas por muitos como bregas, são muito brasileiras, o que confere raízes absolutamente nacionais à trama.

Como não gostar de um filme que já começa com uma bela interpretação de “Impossível Acreditar que Perdi Você”, de Márcio Greyck? E a música tem até mais espaço do que a fala ao longo da narrativa. As canções, além de muito queridas por todos os personagens, são fundamentais para que a experiência de se assistir ao filme seja arrebatadora, com vários momentos de arrepiar, em especial para quem não tem preconceito com canções mais populares e carregadas de emoções.

Assim, há espaço para canções de Reginaldo Rossi, Odair José, Waldick Soriano, Belchior, Zé Ramalho fazendo cover de Bob Dylan, Gilliard, Roberto e Erasmo e até o jovem Johnny Hooker. As melhores interpretações são as de Julio Andrade. Talvez o melhor ator de sua geração, Andrade dá um show também na hora de subir no palco. O que dizer quando ele sobe para canar “Não Creio em Mais Nada”, clássico do rei da depressão Paulo Sérgio? É demais o que a obra faz sentir, talvez chorar, e se deliciar. E principal: o respeito com todo esse material explorado na tela é lindo.

Além de Andrade, há também interpretações belas de Seu Jorge (quem diria que um cantor seria passado para trás por um ator), por Jaloo, por Marjorie Estiano e pelo próprio Erasmo Carlos. Sua presença ali é mais do que simbólica. Parceiro do Rei e influência direta na formação da maioria dos cantores românticos da década de 1970, o Tremendão não precisa se esforçar para cantar bem. Basta estar lá e cantar uma das faixas.

Ele é o patriarca de uma família um pouco problemática e que comanda aquele espaço paradisíaco noturno.

Somos apresentados à família por meio do personagem do policial Odair (Lee Taylor), que é convidado para ser o guarda-costas do neto homossexual, que se apresenta travestido nos shows. Odair aceita, encantado com aquele lugar. Não demora para descobrirmos que há uma estreita ligação entre ele e aquela família.

Transbordando amor por todos os lados, “Paraíso Perdido” tem suas quase duas horas de música, intrigas amorosas e traumas do passado plenamente abraçados pela audiência, em uma experiência catártica poucas vezes vista no cinema brasileiro, ao menos no que se refere ao uso da música.

Além de resgatar a música sentimental do passado, o trabalho mais belo da diretora de “Ó Paí, Ó” tem uma elegância no uso dos movimentos de câmera, dos campos e contracampos tão bem usados nas cenas de apresentações na boate (destaque para a cena em que uma personagem informa estar grávida usando libras) e uma direção de arte e uma fotografia em tons quentes. Um dos melhores acontecimentos deste estranho e sombrio ano.