Em Ritmo de Fuga junta musical e tiroteios num dos filmes mais originais do ano

“Em Ritmo de Fuga” é um filme de assalto tarantinesco concebido como um musical de jukebox por um diretor inglês conhecido por besteiróis deliciosos como “Todo Mundo Quase Morto” (2004), “Chumbo Grosso” […]

“Em Ritmo de Fuga” é um filme de assalto tarantinesco concebido como um musical de jukebox por um diretor inglês conhecido por besteiróis deliciosos como “Todo Mundo Quase Morto” (2004), “Chumbo Grosso” (2007) e “Scott Pilgrim Contra o Mundo” (2010). Edgar Wright é cultuado em muitos círculos, mas nunca foi levado a sério como deveria.

Após “Em Ritmo de Fuga”, convém prestar mais atenção.

Taí um cineasta com um febril e delirante senso de aventura, que nunca resvala no tom cerimonioso. Ao contrário, é ferina a sua inclinação para espinafrar a tradição. Wright sabe que o cinema de Hollywood – reflexo de uma sociedade imatura – acredita em super-heróis, vilões e forças ocultas. Assim, propõe em seus filmes zombar de todo esse sortimento sem medo de medir seus excessos.

Para ele, faz sentido que entre todo esse novo mundo de linguagem cifradas, os adolescentes estejam num patamar superior. É uma figura do gênero que ele elege para empreender sua nova aventura. Ansel Elgort, o August de “A Culpa das Estrelas” (2014), faz Wheelman Baby, um motorista de fuga dos sonhos para qualquer assaltante de bancos. O tipo de garoto de poucas palavras, imerso na trilha pulsante de seu fone de ouvido e que dirige como o diabo, safando os ladrões da polícia com seu jeito audacioso e intuito de pilotar máquinas envenenadas.

A viagem de Baby sempre é dupla, um delas ocorre na direção de um carro, a outra, introspectiva, acontece dentro da sua bolha musical. Enquanto espera que a quadrilha saia do banco, ele escuta a eletrizante “Bellbottoms” de Jon Spencer Blues Explosion, estalando os dedos, transformando o console do carro numa bateria e repicando o ritmo ao som dos limpadores do pára-brisa. Ao ver isso, um assaltante o chama de retardado, o outro quer matá-lo. Baby é menosprezado e tratado como um insignificante.

Acontece que tudo o que os adultos fazem de forma atrapalhada, o garoto refaz com a leveza de um malabarista. Menos atirar. Ah, essa índole destrutiva não faz parte do caráter de Baby. Ele não pertence a essa geração.

As escopetas vomitam fogo e ele se enfurna no seu mundinho. A violência alucinada ganha a tela e ele se comporta quase como um autista. Há cenas em que o ra-tá-tá-tás das metralhadoras são usadas como pontuação melódica, proporcionando uma seção de ritmo homicida. Isso até o momento em que Baby começa a levar pancadas, tiros de raspão. O menino não quer ser acordado.

No particular, Baby é um dos personagens adolescentes mais comoventes a desfilar nas telas esse ano. Se em princípio parece meio bobo, um homem-criança atrofiado, no decorrer, descobrimos tratar-se de um menino forçado a crescer muito cedo. Um garoto que ficou meio surdo após um acidente de carro que matou seus pais, e que agora está a mercê de Doc (Kevin Spacey, da série “House of Cards”), um líder criminoso, especialista em colocá-lo nas missões mais perigosas. Baby acredita que o próximo assalto será o último. Depois estará fora. Mas quem disse que Doc deixará ele partir?

A generosidade de Wright com os atores muitas vezes é subvalorizada. Aqui ele compõe com Elgort, seu protagonista excêntrico. Embora em princípio, a auto-terapia musical de Baby pareça apenas uma muleta estilística para Wright, no prolongamento ele busca uma compreensão no uso da trilha que se traduz num ideal e nas próprias motivações de Baby. A música acrescenta sombras a um personagem que se inclina para um vazio severo.

Quando Baby se interessa por uma garçonete chamada Debora (Lily James, a “Cinderela”), seu flerte desajeitado se reafirma de novo pela música, e o diálogo passa a ser tanto sobre a história da canção, como também sobre a história de cada um dos dois.

Lily James acaba não fugindo muito da mocinha meiga, mas o resto do elenco integra-se perfeitamente ao enredo. Kevin Spacey condensa em seu líder criminoso tanto a frieza de um assassino, como uma certa ternura: algumas vezes ele trata Baby como filho. E só mesmo Spacey é capaz de combinar essas duas contradições, tornando o personagem convincente.

Outro que surpreende é Jamie Foxx (“Annie”). Ele compõe o criminoso mais psicótico da quadrilha. Batts, seu personagem, é um observador inteligente, com uma habilidade para deduzir pensamentos precisa – e acredita que é exatamente esse dom que o mantém vivo. Jon Hamm (da série “Mad Men”) constrói a persona de seu ladrão com uma ilexão avessa a de Foxx. Ele parece afável, controlado, mas basta alguém espetar os olhos gordos sobre sua esposa, Darling (Eiza González, da série “From Dusk Till Dawn”), e o homem se transforma. Num piscar de olhos, ele passa do sujeito equilibrado a uma raiva inquietante e mais assustadora do que a violência de Batts.

Há um quinto ator em cena precioso, CJ Jones (“What Are You… Deaf?”). O ator, que é surdo de verdade, interpreta Joseph, o pai adotivo de Baby. A interação de seus personagens, usando a língua de sinais dos surdos-mudos, é cheia de alegria e ternura, e suas advertências contra a profissão de Baby são suavizadas pelos olhares de simpatia e amor incondicional para o menino.

Por trás da diversão inconsequente, “Em Ritmo de Fuga” pode ser visto também como sátira à briga pelo poder que existe na atual Hollywood. O garoto nerd, imerso no mundinho do fone de ouvido, e que todo mundo menospreza, está assumindo a chefia dos estúdios. E Wright, muito cáustico, brinca com a ideia da sucessão, ao mostrar que a esperteza de Baby pode levá-lo a dominar as circunstâncias. Num certo momento, no entanto, Wright zomba de Baby, mostrando que ele não deve ficar muito cheio de si. Um garoto ainda mais novo que ele aparece para suplantar sua esperteza. A criança intervém em apenas duas cenas, mas sua presença é suficiente para desarmar o herói nerd, ilustrando como o talento está se tornando algo cada vez mais precoce. Ou seria um infantilismo?

“Em Ritmo de Fuga” orbita em torno dessas duas ideias.

Botemos alguns defeitos. Na meia hora final, Wright empolga-se tanto com seu tour de force cinemático, que quase desaba no maneirismo estéril. As cenas e sacações de Wright extrapolam a duração do filme, que podia acabar uns 15 minutos antes. O excesso de entusiasmo põe em risco o resultado final.

Mas para um diretor tão preocupado com a necessidade de crescer sem perder de vista suas obsessões artísticas, até no exagero Wright continua a aprimorar suas habilidades. Não é definitivamente um diretor fascinado apenas pela pirotecnia. Com “Em Ritmo de Fuga” ele comprova, sim, ser o cineasta de ação mais original de sua geração.