Corra! diverte e assusta ao fazer terror com a hipocrisia da tolerância racial

Se equilibrar entre dois gêneros tão extremos como o terror e a comédia não é tarefa para muitos. Jordan Peele, o diretor de “Corra!”, realiza a proeza de nos surpreender continuamente com […]

Divulgação/Universal Pictures

Se equilibrar entre dois gêneros tão extremos como o terror e a comédia não é tarefa para muitos. Jordan Peele, o diretor de “Corra!”, realiza a proeza de nos surpreender continuamente com risadas nervosas e sustos. A trama estranhamente parece obedecer até demais os lugares comuns do gênero. Mas é aí que está sutileza. Peele estica os clichês a um limite tão agudo, que a normalidade começa a incomodar. O horror em “Corra!” nasce dessa sensação. Percebe-se que há alguma coisa errada, mas é terrível quando você não consegue identificar exatamente de que se trata.

Na primeira metade do filme, há apenas um episódio sombrio. Numa rua escura e deserta, um sujeito mascarado sequestra um rapaz negro. A cena parece completamente dissociado da seguinte, que mostra, numa vibe bacana, o personagem central, o fotógrafo Chris (o ator britânico Daniel Kaluuya, visto antes em “Sicário”), vivendo um romance de sonhos com uma garota branca de olhos azuis (Allison Williams, da série “Girls”).

Rose acha que está na hora de levá-lo para conhecer seus pais. Chris resiste e ela insiste, o que leva o rapaz a uma pergunta desajeitada mas necessária: “Eles sabem que eu sou preto?”

Rose cai na gargalhada, chama o namorado de bobo e lembra que eles estão no século 21. Depois acrescenta: “Meu pai teria votado em Obama pela terceira vez, se pudesse”. E então: “Eles não são racistas”.

Podemos observar em primeira mão como eles não são racistas quando Chris e Rose dirigem para o norte e, depois de um pequeno acidente rodoviário, chegam à bela mansão suburbana da família. O pai de Rose (Bradley Whitford, da série “Trophy Wife”) não faz cerimônias; puxa Chris para um abraço de “homem”, tagarelando sobre o privilégio que é ser capaz de experimentar a cultura de outras pessoas.

Sua mãe (Catherine Keener, de “Capitão Phillips”), uma psiquiatra, é um pouco mais tática, oferecendo infinitas xícaras de chá enquanto fala sobre as virtudes da terapia de hipnose. Só o estranho irmão de Rose, Jeremy (Caleb Landry Jones, de “Byzantium”) parece destoar daquele mundo de mil maravilhas. Até os empregados, curiosamente todos negros, aparentemente estão risonhos. Aliás, tão risonhos que soa incomodo.

Os pais de Rose fazem uma festa para seus ricos vizinhos brancos, e Chris de repente se toca que ele está virando o centro das atenções. Os convidados o abordam com suas maneiras de clube e elogiam seu físico, fazendo referências forçadas a Tiger Woods e acariciando os músculos de Chris com o mesmo espirito dos velhos comerciantes de escravos sulistas do século 19. Mas ninguém ameaça chicoteá-lo ou mesmo ofendê-lo, ao contrário, um dos insights mais persistentes do filme é que mesmo a cortesia, de indivíduos presumivelmente educados, pode ser sufocante e opressiva.

Claro, a ameaça está diretamente ligada às revelações mais profundas, e, para quem é cinéfilo, não é difícil adivinhar que o enredo deve algo a “O Homem de Palha” (1973) e “Vampiros de Almas” (1956), mas o grande público não sabe disso. Como nesses filmes, a paranoia inquietante dá lugar ao pânico de aceleração total, enviando Chris para um buraco do qual será muito difícil de escapar.

Peele sabe tudo de ritmo e cadência, domina a linguagem das alternâncias, trafega pela estética de Hollywood sem perder seu estilo, e transforma o filme, em sua segundo parte, numa vertiginosa montanha russa de aflições.

Mas não é pelos sustos e pelas reviravoltas que “Corra!” marca uma posição tão significativa dentro do cinema norte-americano atual, e sim graças ao desmantelamento que o diretor inteligentemente faz de várias décadas de estereótipos racistas, para mostrar, com um riso safo no rosto, que por trás desse exterior aberto e tolerante, a América continua hipócrita e conservadora.

Assim como Barry Jenkis fez em “Moonlight”, Peele é o mais novo representante infiltrado no velho recinto de exaltação branca que é Hollywood, a conquistar uma nova posição na indústria do cinema norte-americano. E ele constrói esse caminho com uma delicadeza e inteligência imensas.