Jacques Rivette (1928 – 2016)

Morreu o cineasta francês Jacques Rivette, integrante original da nouvelle vague, que se especializou em filmes sobre teatro, mulheres e experimentalismo, criando uma filmografia cultuadíssima, que desafia a cinefilia. Ele faleceu na […]

Morreu o cineasta francês Jacques Rivette, integrante original da nouvelle vague, que se especializou em filmes sobre teatro, mulheres e experimentalismo, criando uma filmografia cultuadíssima, que desafia a cinefilia. Ele faleceu na sexta (29/1) aos 87 anos de idade e, de acordo com a imprensa francesa, sofria do Mal de Alzheimer há alguns anos.

Seu nome de batismo era Pierre Louis Rivette. Ele nasceu em 1928 em Rouen, Seine-Maritime, na França. Estudou brevemente literatura na universidade, até ler o livro de Jean Cocteau sobre as filmagens de “A Bela e a Fera” (1949), que lhe despertou o desejo de virar cineasta. Em 1949, ele rodou o seu primeiro curta-metragem, “Aux Quatre Coins”, em sua cidade natal. E no ano seguinte mudou-se para Paris para seguir sua paixão, passando a ser presença constante no Cine-Clube du Quartier Latin e na Cinémathèque Française.

Foi na Cinémathèque, em 1950, que veio a conhecer os jovens Claude Chabrol, Jean-Luc Godard e François Truffaut, que devoravam filmes antigos na primeira fila da projeção, chamando atenção por participar ativamente de debates após as sessões. Naquele ano, ele também filmou seu segundo curta, “Le Quadrille”, produzido e estrelado por Godard, e no qual, segundo o próprio Rivette, “absolutamente nada acontece”. Quando o filme foi exibido no Ciné-Club du Quartier Latin, as pessoas começaram a sair, e, no final, os únicos que ficaram foram Godard e uma menina.

Rivette começou a escrever críticas de cinema em 1950 para a Gazeta du Cinéma, co-fundada pelo cineasta Éric Rohmer, e foi contratado por André Bazin no ano seguinte para ajudar a lançar a Cahiers du Cinéma. Com ele, vieram todos os enfant terribles da Cinémathèque, mas Rivette foi quem chamou mais atenção por textos em que defendia diretores de Hollywood, como Howard Hawks, John Ford, Nicholas Ray, Alfred Hitchcock e Fritz Lang, ao mesmo tempo em que atacava o “cinema francês de qualidade”, de cineastas como Claude Autant-Lara, Henri-Georges Clouzot e Rene Clement, escrevendo que eles tinham medo de assumir riscos e tinham se corrompido por dinheiro.

A colaboração entre o grupo era tão intensa que “O Truque do Pastor” (1956), novo curta de Rivette, foi escrito e produzido por Chabrol. O próprio Chabrol ainda aparecia em cena, com Godard e Truffaut, fazendo figuração. Rivette também ensaiou uma metragem maior, com “Le Divertissement” (1952), que durava 45 minutos. E, após entrevistar diversos cineastas famosos, considerou-se pronto para filmar seu primeiro longa-metragem.

“Paris nos Pertence” (1961) levou três anos para ser filmado, devido ao desafio financeiro de se fazer cinema independente. A obra provocava já no título e estabeleceu os princípios da “experiência Rivette” de cinema, sempre à beira do fantástico e do delírio lúdico e noturno, e usando o teatro como metáfora da aventura humana. Na trama, um grupo de jovens atores ensaia para uma produção de Shakespeare que nunca estreia, enquanto fornecem uma mostra da vida boêmia de Paris no final dos anos 1950. Chabrol, Godard, Jacques Demy e Rivette aparecem em papéis menores.

A demora em finalizar seu filme o deixou para trás, quando as estreias de Chabrol (“Nas Garras do Vício”, 1958), Truffaut (“Os Incompreendidos”, 1959) e Godard (“Acossado”, 1960) sacudiram os festivais de cinema, chamando atenção para o movimento nouvelle vague. Chabrol já estava no quarto longa quando “Paris nos Pertence” chegou às telas. E para complicar, assim como os primeiros filmes de Éric Rohmer, seu debut não obteve a mesma repercussão que os trabalhos dos colegas. A falta de uma estreia impactante manteve Rivette por mais tempo na Cahiers, onde se tornou editor, entre 1963 e 1965, levando a revista a adotar uma perspectiva semiótica e deixando-a à beira da falência. Em suas próprias palavras, ser crítico nunca foi seu objetivo, apenas “um bom exercício”.

Para seu segundo longa-metragem, Rivette escolheu uma adaptação do romance “A Religiosa”, de Denis Diderot. Incapaz de conseguir financiamento para o projeto, ele dirigiu uma versão teatral, produzida por Godard e estrelada pela mulher dele, Anna Karina. Foi um fracasso completo, mas Karina, que depois também estrelou o filme, ganhou prêmios por sua interpretação. Isto inspirou o diretor a aprofundar o roteiro e buscar parceiros para a produção.

A repercussão começou já no anúncio das filmagens, quando a Igreja Católica e integrantes do comitê responsável pela censura cinematográfica avisaram que o longa não passaria nos cinemas. Publicada em 1796, a obra de Diderot demonstrava a brutalidade da Igreja, que mantinha jovens confinadas em conventos contra a própria vontade, e se manifestava por meio de cartas de uma noviça pedindo ajuda para escapar daquela vida.

Rivette conseguiu ganhar aprovação da censura, mas mesmo assim o filme foi banido por pressão da Igreja. Diversos jornalistas e cineastas protestaram, criando grande expectativa para sua première no Festival de Cannes, que acolheu a obra, juntando-se ao protesto. Com cenas de tortura psicológica, freiras lésbicas e monges libidinosos, “A Religiosa” foi recebido com palmas entusiasmadas. Diante dos elogios da crítica, a censura foi confrontada e o filme pôde chegar aos cinemas, tornando-se, graças à publicidade criada pela polêmica, o maior sucesso da carreira do cineasta.

Sua fama de agitador atingiu o ápice na primavera de 1968, quando liderou um movimento contra o afastamento do diretor da Cinémathèque pelo Ministério da Cultura, que levou milhares às ruas e envolveu distribuidores de cinema ao redor do mundo. Sem se contentar com a vitória nesta batalha, aproveitou o ímpeto para exigir o fim da censura e a ingerência do governo no cinema francês, o que levou a uma histórica interrupção do Festival de Cannes em solidariedade. Era maio de 1968 e a imaginação acreditava que chegaria ao poder.

Querendo manifestar essa efervescência em filme, Rivette buscou romper com os limites do cinema em seu trabalho seguinte, “L’Amour Fou” (1969). Dispensou o roteiro, a construção de cenas, as convenções e a estrutura de filmagem para realizar uma obra baseada na improvisação. O fiapo de trama acompanhava o ensaio de um grupo de teatro, por sua vez filmado por uma equipe de documentário, e complementado por um drama de bastidores entre o diretor teatral e sua esposa, que também é a atriz principal da peça dentro do filme. A atriz era Bulle Ogier, que se tornaria musa de Rivette, voltando em várias de suas obras. Outra curiosidade é que o longa misturava diferentes bitolas – as cenas do documentário foram filmadas em 16mm -, e terminava num longo take sem cortes da discussão do casal central, culminando na destruição do apartamento em que eles viviam.

Entusiasmado com o resultado, o cineasta quis ampliar ainda mais a potencialidade dessa experiência e rodou 30 horas de um novo filme sem roteiro, baseando-se, mais uma vez, em ensaios teatrais e personagens boêmios. Ao editar o resultado em “Não me Toque” (Out 1, 1971), o filme registrou 12 horas e 40 minutos de duração, exibindo múltiplos personagens, vagamente conectados por histórias independentes, cujas tramas se entrelaçavam e revelavam novos personagens com suas próprias tramas paralelas. E tudo a partir da obsessão de um vigarista (Jean-Pierre Leaud), que dizia receber mensagens ocultas do conto “História dos Treze”, de Honoré de Balzac.

Apesar da longa duração, ampliada por um ritmo narrativo lento, a ousadia de levar ao limite a estrutura de multiplots teve grande impacto no cinema autoral dos anos seguintes, influenciando Robert Altman, Krzysztof Kieślowski e até Alejandro González Iñárritu.

Mas os cinemas não aceitaram a duração de “Não me Toque”, que teve uma première de gala na Casa da Cultura de Le Havre, na Normandia, assistida por 300 pessoas que viajaram de Paris especialmente para a sessão em setembro de 1971. E só. Rivette chegou a planejar exibir o trabalho em capítulos como uma série na TV. Nenhum canal se interessou.

Com ajuda da roteirista Suzanne Schiffman, o diretor passou um ano editando uma versão condensada da obra, que batizou de “Out 1: Spectre”. Lançado em 1974, a síntese durava quatro horas e meia e se tornou a versão mais conhecida, até que, em 1989, o Festival de Roterdã resolveu resgatar a maratona original, inspirando a TV francesa a finalmente exibi-la. Depois disso, o filme só foi ganhar sua terceira exibição pública em 2006, como a obra que inaugurou o Museum of the Moving Image, em Nova York, ocasião em que esgotou todos os ingressos e ganhou a fama de ser “O Santo Graal” dos cinéfilos.

Seu filme seguinte seguiu rota oposta, com um roteiro bastante estruturado. “Céline e Julie Vão de Barco” (1974) mergulhava na fantasia com referências a “Alice no País das Maravilhas”, mostrando duas desconhecidas: Julie (Dominique Labourier), que segue Céline (Juliet Berto) pelas ruas de Paris e, às vezes, troca de lugar com a outra, até que ambas se vêem transportadas para um drama de época (baseado em contos de Henry James), como se fosse um sonho compartilhado que elas podiam controlar, feito autoras de um livro mágico. Venceu o Prêmio do Júri do Festival de Locarno e influenciou toda a estética “onírica” do diretor David Lynch, mas seu impacto pode ser conferido mesmo no cinema comercial, na trama da comédia “Procura-se Susan Desesperadamente” (1985), estrelada por Madonna.

As críticas positivas à forma como destacou a amizade das protagonistas levaram Rivette a planejar uma quadrilogia dedicada às mulheres, batizada de “Cenas da Vida Paralela”, em que cada filme combinaria romance e fantasia. Seu objetivo com esse projeto era aproximar o cinema da poesia.

Ele chegou a filmar “Duelo” e “Noroeste” em 1976, opondo personagens fantasiosas, como a Rainha da Noite e a Rainha do Sol e duas piratas, mas sofreu um colapso nervoso durante a produção do terceiro filme, abandonando o projeto em seu começo, após “Duelo” receber críticas negativas e “Noroeste” ser considerado medíocre e ter sua distribuição recusada, causando problemas entre o diretor e seus produtores.

Em baixa, Rivette aceitou filmar “Merry-Go-Round” em 1978 por sugestão dos produtores, porque Maria Schneider, a estrela de “O Último Tango em Paris” (1972), queria filmar com ele. O elenco também incluía Joe Dallesandro, muso dos filmes underground de Andy Warhol, numa história de crime de contexto surreal, em que a trilha sonora era tocada por músicos presentes na trama.

O filme só chegou aos cinemas em 1981, mesmo ano em que o diretor rodou “Um Passeio por Paris”, considerado o final de uma trilogia sobre a Paris de sua geração – iniciada por “A Cidade Nos Pertence” e “Não Me Toque”. O elenco reunia Bulle Ogier e sua filha, Pascale, como duas mulheres que se encontram de forma aleatória e investigam um mistério estranho e surreal nas ruas da capital francesa, envolvendo vários personagens chamados Max. Como ensaio para esse longa, Rivette ainda dirigiu um curta, “Paris s’en Va”.

De volta à filmagem de ensaios teatrais, “Amor por Terra” (1984) trazia Jane Birkin e Geraldine Chaplin como irmãs atrizes, que, após uma apresentação num pequeno apartamento, são convidadas a ensaiar o texto de outra peça numa mansão, baseada na vida do diretor, onde começam a ter visões de uma tragédia prestes a se repetir. Uma das curiosidades desse roteiro é que as irmãs eram Emily e Charlotte, como as irmãs Brontë, e o próximo filme de Rivette, em contraste com sua filmografia experimental, foi uma adaptação de “O Morro dos Ventos Uivantes” (1985), de Emily Brontë, transposta para o sul da França nos anos 1930.

Insistente em seu tema, Rivette rodou “O Bando das Quatro” (1989) sobre quatro estudantes de teatro, cujas vidas se alternam entre as peças que ensaiavam e a vida real. Por ocasião da première no Festival de Berlim, ele explicou porque gostava tanto de filmar ensaios: “É muito mais interessante mostrar o trabalho de criação do que o resultado”.

O diretor gostou tanto de trabalhar com as jovens atrizes de “O Bando das Quatro” que a experiência o motivou a voltar ao teatro, dirigindo duas peças com as protagonistas do filme. O período também o preparou para rodar o filme que muitos consideram sua obra-prima.

Vagamente inspirado num conto de Honoré de Balzac, “A Bela Intrigante” (1991) mostrava como a chegada de uma jovem (Emmanuelle Béart) inspirava um velho pintor (Michel Piccoli) a retomar o prazer pela arte, usando-a como modelo para terminar seu quadro mais desafiador. O detalhe é que Rivette quis transmitir a impressão de que o quadro estava sendo pintado em tempo real, fazendo o longa atingir quatro horas de duração. Entretanto, esta maratona não foi encarada como empecilho para a apreciação da obra. “A Bela Intrigante” não só venceu o Grande Prêmio do Júri do Festival de Cannes como até a resistência do público, que soube apreciar seus takes longos e generosos da nudez de Béart, uma das atrizes francesas mais sensuais da época.

Assim como fez com “Não me Toques”, o diretor reeditou o filme numa versão abreviada, “Divertimento” (1992), com metade da duração. Mas essa edição também mudou o ponto de vista da história, alterando a posição da musa. De objeto de contemplação, a personagem de Béart passou a contemplar os bastidores de ciúmes da criação artística, que envolviam seu namorado e a esposa (Jane Birkin) do pintor. Com isso, Rivette mostrou como a edição poderia impactar um filme.

Especialista em retratar mulheres, ele decidiu que já era hora de filmar a heroína mais popular da França, projetando uma cinebiografia de Joana D’Arc dividida em duas partes, visando focar alternadamente suas realizações como guerreira e seu julgamento por heresia. Estrelado por Sandrinne Bonaire, “Joana, a Virgem” tinha alcance épico, mas o público não esperava um épico de Rivette, e seu fracasso comprometeu as finanças dos produtores.

Pressionado a lançar um filme barato, o cineasta reuniu três jovens atrizes em ascensão, Nathalie Richard, Marianne Denicourt e Laurence Côte, para criar um musical ao estilo da velha Hollywood, mas com um subtexto que prestava homenagem à nouvelle vague, evidenciada pela participação de Anna Karina como cantora de nightclub. Em “Paris no Verão” (1995), os obstáculos na vida das três protagonistas se transformavam em canções, resultando numa comédia leve e divertida, uma raridade na filmografia do diretor.

Ele seguiu com outros trabalhos “convencionais”. Em “Defesa Secreta” (1998), inspirou-se no mito de Electra e nos filmes de Hitchcock para contar uma história de vingança feminista, estrelada por Sandrine Bonnaire. As referências aos mestres que idolatrava, em seus dias de Cahiers do Cinema, também se manifestaram em “Quem Sabe?” (2001), uma homenagem às comédias malucas de Howard Hawks e Frank Capra.

Em fase quase testamentária, o diretor resolveu fazer um apanhado de seus roteiros não filmados num livro publicado em 2002. E esse reencontro com o passado lhe deu ânimo para retomar “A História de Marie e Julien” (2003), que seria o terceiro longa de sua quadrilogia feminina, interrompida por seu colapso em 1976. O projeto lhe permitiu retomar sua parceria com Emmanuelle Béart, em papel originalmente concebido para Anna Karina, explorando a beleza etérea da atriz para transformá-la em fantasma. Mas ao contrário dos elementos fantasiosos das personagens de “Duelo” e “Noroeste”, a inclinação gótica de “A História de Marie e Julien” foi aclamada. Rivette conseguiu, finalmente, criar sua poesia cinematográfica.

O reencontro com o passado continuou com a produção de “Não Toque no Machado” (2007), adaptação fiel da obra de Balzac que inspirou o início de “Não me Toque”. Foi seu penúltimo longa, antes de se despedir do cinema com “36 Vistas do Monte Saint-Loup” (2009), em que dirigiu Jane Birkin pela terceira vez. Esta trama, que se passava num circo, continha uma frase emblemática, dita pelo intérprete de um dos palhaços, André Marcon, que poderia definir sua trajetória: “Nós somos os últimos clássicos”.

O presidente francês François Hollande saudou Rivette, no dia de sua morte, como “um dos maiores cineastas franceses, cuja obra fora de padrões valeu-lhe um reconhecimento internacional”. “Era um dos mais lúcidos, mais inventivos e mais livres da nouvelle vague”, destacou o crítico e ex-presidente do Festival de Cannes, Gilles Jacob. “O cinema francês perde um de seus diretores mais livres e inventivos”, ecoou “a religiosa” Anna Karina. Amém.