Califórnia revive com graça e emoção a adolescência da geração dos anos 1980

“Califórnia”, que marca a estreia de Marina Person como diretora de ficção, sintetiza muito bem os anos 1980, década que foi um misto de alegria e colorido com algo de soturno e […]

“Califórnia”, que marca a estreia de Marina Person como diretora de ficção, sintetiza muito bem os anos 1980, década que foi um misto de alegria e colorido com algo de soturno e bem depressivo (inclusive com a chegada da Aids). A disparidade da música da época é bem representativa dessa bipolaridade. Por isso, a trilha é tão importante neste filme, em especial o destaque dado à banda The Cure, que, além de comparecer com duas faixas (em momentos bem especiais), ainda inspira um personagem muito importante que se veste um pouco como o seu ídolo Robert Smith – e é o esquisitão da escola. The Cure se caracterizava por alternar canções depressivas com outras extremamente alegres em seus discos.

Do lado brasileiro, temos os Titãs, que comparecem também com esses dois lados da moeda: toca a alegre “Sonífera Ilha” e a versão acústica e noventista de “Não Vou Me Adaptar”. E tem o cantor Paulo Miklos (“Carrossel – o Filme”) presente, no papel de pai da protagonista Estela (a estreante Clara Gallo), uma moça cujo sonho maior é viajar para a Califórnia, lugar onde seu tio Carlos (Caio Blat, de “Alemão”) mora. Ele trabalha escrevendo sobre música pop, outra das paixões de Estela, que, ainda novinha, descobrindo a vida, é fã de David Bowie.

O filme começa no dia de sua primeira menstruação. A sexualidade, como é natural, é algo muito importante para ela e para as amigas, que falam sobre os romances com os meninos. Assim, enquanto a viagem para a Califórnia não chega, Estela tem uma queda por um rapaz da escola e vê nele o sujeito ideal para tirar a sua virgindade. As coisas não saem muito bem como ela quer, assim como a viagem para a Califórnia, que é adiada pela chegada-surpresa do tio Carlos, visivelmente abatido e sem expectativa de retornar para os Estados Unidos. Sim, o filme também trata da Aids e de como ela trouxe consigo inúmeras tragédias familiares.

A aproximação e o amor de Estela pelo tio são bastante evidenciados e há um momento em especial que é bem emocionante: a cena do restaurante, quando os dois estão sós. Estela nada sabe do grave problema do tio e os espectadores se tornam cúmplices daquele momento de nó na garganta, numa idade em que todos os sentimentos são potencializados.

E que bom que o filme consegue potencializá-los, pois o público ganha com isso, com a paixão que aqueles personagens têm pela música, em especial pelo rock daquela época. Assim, há cenas em loja de discos, na casa cheia de discos (e livros e quadrinhos) do novo amigo que Estela conhece na escola (Caio Horowicz, da série “Família Imperial”), personagem que a apresenta a livros e discos que considera importantes, talvez até sem saber o quanto isso contribuísse para sua formação. Claro que acaba surgindo algo além da amizade entre os dois, algo esperado pela estrutura da narrativa.

O que não quer dizer que não tenhamos uma sucessão de pequenas surpresas ao longo da jornada de autoconhecimento de Estela. Uma jornada que contará com corações partidos, um parente querido muito doente e a sublimação pela arte, não apenas como válvula de escape, mas como descoberta da própria identidade e razão de viver.

Embora Marina Person tenha dito que não se trata de um filme autobiográfico, é inevitável imaginá-la ali, guiando o público por um túnel do tempo que, ora é visto com certo distanciamento, ora experimentado como uma imersão na adolescência de sua geração. Quam já foi jovem sabe o quanto é perturbador ter tanta energia, ter o mundo inteiro pela frente e não ter a menor ideia de como agir, seja na vida amorosa, seja na construção de seu futuro.

A vida é cheia de coisas lindas como a arte e o amor, que convivem ao lado de tragédias e tristezas. Essa é a graça, na verdade, e por isso às vezes é necessário que um filme como “Califórnia” nos ajude a lembrar disso.